sexta-feira, 29 de abril de 2011

Ninguém aprende samba no colégio, infelizmente



A alusão ao samba de Noel Rosa, no título deste artigo, não é sem propósito. Sendo o samba, e o futebol, um dos componentes do DNA da identidade brasileira, a ironia do poeta da Vila é de deixar triste e cabisbaixo qualquer um que ame a cultura popular. Noel não se fez de rogado ao expor ao ridículo a tendência das elites culturais tupiniquins da época em afrancesar-se ou americanizar-se para se parecerem sofisticadas. Dizia ele num de seus sambas, eternizado na voz de Aracy de Almeida:


Amor lá no morro é amor pra chuchu
As rimas do samba não são I love you
E esse negócio de alô,
Alô boy, alô Johny
Só pode ser conversa de telefone

Ao mesmo tempo que faz galhofa do vazio moral dessas elites, acusa também a cultura oficial escolar, preocupada em macaquear uma tradição que pouco lhe diz respeito e que, em contato com a realidade social brasileira, figura-se ridícula, porque postiça: não se aprende samba no colégio não porque não seja legítimo, mas porque o colégio está atolado no pedantismo que rejeita o Brasil real, com sua originalidade, em favor de um “glacê” simbólico que, deslocado do país de origem, não significa nada, ou antes, indica uma moléstia congênita e atroz, que Nelson Rodrigues definiu agudamente como “complexo de cachorro vira-lata”.

Ora, que nos idos dos anos 20 do século passado não se ensinasse samba no colégio é compreensível, embora não justificável. Agora, que depois da Revolução de 30, do golpe do Estado Novo, da redemocratização pós Segunda Guerra, dos anos JK, de uma nova ditadura ainda mais cruel que a primeira, de novo período de redemocratização dos anos 80, que depois de Noel Rosa e Nelson Rodrigues, para não estender demais a lista de citações, ainda não se ensine samba no colégio é pra lá de lamentável.

Quem não sabe que em sociedade letrada a cultura apóia-se no sistema educacional? Grande parte da vida de crianças e adolescentes é, nos dias atuais, vivida no interior da escola, o que significa dizer que aquilo que é experimentado no âmbito dela tem peso decisivo na formação de gerações e gerações de brasileiros.

Porém, qual é mesmo a atenção que se tem dado a que nosso sistema educacional volte-se para elementos formativos do povo brasileiro? Reclama-se do mau gosto generalizado o qual crescentemente propicia o sucesso de lixo cultural em volumes astronômicos, a congestionar a programação de rádio e TV. A que se deve essa situação senão ao fato de que hoje não se aprende samba nem no colégio nem em praticamente nenhum outro canto? A música brasileira sobrevive à margem da mídia e do sistema educacional oficial graças a gênios surgidos fora do colégio, a maioria já passada dos 50 anos e que vai deixando raros herdeiros.

Num momento em que a luta contra o analfabetismo e pela consolidação de uma cultura escolar mais consistente ganha relevo, seria alvissareiro que o Brasil pulasse os muros da escola de fora para dentro, porque, parafraseando agora Simone de Bouvoir, quer era francesa, mas nunca foi glacê cultural, não se nasce brasileiro: torna-se brasileiro.

É preciso, sim, ensinar samba no colégio (samba, aqui, é metáfora, colégio não): sua história, suas narrativas, seus temas e formas, seus poetas e intérpretes, pois a função da escola no Brasil não é formar um cidadão abstrato, ascético e anticéptico – que é o que se depreende da maioria dos atuais projetos pedagógicos das instituições de ensino oficial –, mas formar um cidadão brasileiro, cuja identidade é hoje indissociável da música brasileira, das cantigas de ninar à música instrumental.

Falei disso tudo para falar de outra coisa, o que dá na mesmo: se não é possível ser brasileiro sem o condimento da música brasileira, que dizer do nosso patrimônio audiovisual? Se é uma aberração que não se ensine samba nas escolas básicas brasileiras, é também anomalia bizarra que brasileiros, mergulhados numa cultura cada vez mais audiovisual, saiam analfabetos dessa gramática ao fim de 11 (agora 12) anos de escolarização – isso porque a expressão “inclusão digital” anda na moda... Crianças e adolescentes passam horas preciosas de suas vidas em frente de uma TV e não são capazes de saber se os estão fazendo de idiota ou outra coisa – e outra coisa, aqui, seria uma bênção.

Quem é que não sabe que o audiovisual é um setor estratégico para uma nação? Como é que se quer formar um “cidadão crítico” (os projetos pedagógicos amam essa expressão), se crianças e adolescentes são privados do be-a-bá da gramática audiovisual? Como ser crítico, ou antes, como ser cidadão, estando-se condenado ao analfabetismo desse idioma que já é mais universal que o inglês?

Formar público para nossa música e para nossas produções audiovisuais, de TV e de cinema, é, sim, obrigação de nossas escolas de ensino Fundamental e Médio. E se esses dois componentes genéticos do Brasil ainda não foram incorporados aos currículos oficiais, agradeçamos aos nossos sonolentos legisladores e aos nossos governantes faltos daquilo que Machado de Assis chamou “instinto de nacionalidade”, todos eles discípulos do malandro ironizado por Noel Rosa que: “Deixou de sambar dando pinote/ na gafieira dançando o foxtrote”.

E ninguém tasca, segundo Aracy de Almeida.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

MADADAYO: A liberdade está na dor


Ser humanizado já foi mais dolorido

O século XX assistiu aperfeiçoarem-se meios de dominação social num grau de detalhamento antes suspeitado por poucos, entre eles alguns artistas ou intelectuais os quais, desde antes de meados do mesmo século, para desgosto de uns e ainda maior satisfação de outros, radicalizaram seus discursos – encarados como paranóias maníaco-persecutórias –, expondo com sarcasmo, por meio de seus discursos sombrios, àqueles que profetizavam o fim do mundo para um futuro iminente, a notícia aziaga: o Armagedon já chegou.

Do século XIX (quando formas explicitamente coercitivas e economicistas garantiram a vigência da ordem pela dominação exterior dos corpos) aos dias de hoje (quando meios cada vez mais simbólicos encurralam o indivíduo, seja lá o que isso for, a espaços cada vez mais confinados de sua própria agonia), a um exasperador aparato burocrático de controle social de massa somou-se a instauração e o aperfeiçoamento contínuos de mecanismos subjetivadores voltados à produção de multidões sem rosto, a serem encaminhadas ao abatedouro do mercado de consumo, e à produção de almas dóceis, que, quando bem sucedidas, mais não são de que unidades constituintes dessas mesmas faces ou máscaras coletivas indiferenciadas.

Articulados principalmente a partir do período pós-Segunda Guerra, processos horizontais e verticais, de ampliação de alcance e de aprofundamento de eficácia, de massificação e de individuação, créditos especiais aqui à sociologia e à psicologia, conformaram um maquinário de invenção de humanidades estandardizadas do qual não há quem escape sem receber de brinde um bilhete de ingresso no sistema prisional, no hospício ou no cemitério.

Até bem pouco tempo, quando promessas redentoras da modernidade embalavam uma noção de humano redimido pelo poder das máquinas, do útero ao túmulo, o sistema de previsibilidades condicionantes comportava lacunas consideráveis por meio das quais os imponderáveis se insinuavam e – e desde que não assimilados ou eliminados a tempo – perturbavam a homogeneidade apaziguadora.

No nível sócio-institucional, as realidades culturais, étnicas, nacionais, de classe, ou de grupo constituíam verdades confortáveis em cujo interior todos discerniam suas identidades e reconheciam seus papéis. No seio dessas verdades modernas o diferente, não pertencendo ao conjunto e sendo antes percebido nele como mácula, elemento estranho no contínuo indiferenciado, se vivia a desvantagem inerente a todo elemento dissonante, desfrutava igualmente da legitimidade de contestação de leis, normas e lógicas que o excluíam.

No nível individual, não havendo divisão nenhuma para além da pessoa, nem havendo dúvida nenhuma acerca dos gêneros, ficava a normalidade assegurada para os sãos tanto quanto as instituições de saúde e de correção para os doentes da mente, do espírito ou do comportamento. Essa lógica dual, de pertencimento necessário por identidade e exclusão sumária por diferenciação, é sem sombra de dúvidas cruel, todavia, sob seu império, os loucos ainda podiam ser loucos e os criminosos, criminosos.

Numa palavra, bons tempos aqueles em que o exército brancaleônico dos tortos, capengas e desafinados não tinha que submeter à lógica anticéptica do festim dos normais, civilizados e limpinhos, alhures chamado coro dos contentes.

Porém, as hecatombes políticas do século XX, com suas montanhas de cadáveres, e os sucessivos terremotos promovidos pelo desenvolvimento exponencial dos meios de comunicação, encimado agora pelas sucessivas revoluções tecnológicas – confirmadoras e refinadoras de sistemas de controle eficazes e sutis – reduziu essas lacunas e fendas, tão propícias à resistência, a dimensões tão estreitas que se torna impossível acusar esse processo sem reconhecer nele um totalitarismo ainda mais eficiente do que aqueles que vigoraram e ruíram no século XX.

Os elementos e comportamentos dissonantes, antes rejeitados pela modernidade como refugo do processo civilizatório, na pós-modernidade passaram a ser incorporados e acomodados em redes significativas globalizadas, não sem antes terem seu potencial de dano neutralizado e suas formas de expressão higienizadas, em prol da circulação ampla rápida e fácil pelos mercados do mundo.

Adeus às fendas, às fissuras, às rachaduras do sistema, que deixavam vazar ruídos e contestações ameaçadoras. Na pós-modernidade, Marx é boa literatura: que circule pois livremente, já que esvaziado de seus significados, pela banalização mesma da circulação frenética. Che Guevara é pop, tanto quanto o é o Papa, e desde que a reflexão crítica perdeu completamente o sentido, que figurem os retratos de ambos no mesmo emblema de motoclube, ou, caso do primeiro, em biquinis da Cia. Marítima. Bakhunin e Ravachol, moda de vestir e modo de se fazer notar, que sejam associados à calças de punks de butique, que já vêm rasgadas e com tintura a semelhar sujeira. Tróstky, convertido em profeta romântico malogrado, que divida espaço na mesma camiseta com uma estampa estilizada de Marilyn Monroe.

Não há hoje ideologia, etnia, nacionalidade, classe ou grupo cuja particularidade não se ofereça posmodernamente como oportunidade de negócio for global export. Não há transtorno psiquiátrico, contestação ou desajuste social que não seja explorado comercialmente pela indústria da saúde, do hambúrguer ou de Hollywood, ou por todas, em sociedade, ao mesmo tempo. Nem tampouco há drama econômico que a cosmética da miséria – como alguns críticos se referem a certa produção cinematográfica ou televisiva brasileira – não incorpore e traduza em termos de mercadoria simbólica de valor oscilante, a depender das relações de custo-benefício e de oferta-procura.

O mercado da assimilação do diverso na pós-modernidade encontra-se tão aquecido que têm faltado diferenças culturais, étnicas, nacionais, de classe e de grupos – tanto quanto tem havido escassez crescente de loucos e de criminosos genuínos – para abastecer a demanda crescente de anomalias, convertidas em matéria prima da bem sucedida indústria da normalização do corpo, da mente e do espírito.

Chegou-se a um tempo em que, para não ser abduzido pela indústria da normalidade, o diferente, o resistente, o doente precisam fazer-se de sãos; e em que o doido, para ser deixado em paz, só tem como alternativa limitar sua insanidade a espaços cada vez mais recônditos e ainda indevassados de sua intimidade. Superadas essas estratégias incômodas de resistência, serão todos, diferente, resistente, doente e doido, manipulados, revirados do avesso, vasculhados, entubados, dissolvidos e desintegrados até estarem aptos a se constituir insumo de beneficiamento, após o que serão reconconstituídos e “in-corporados”, segundo as mesmas lógicas de decretação de anormalidades, agora etiquetados com adjetivos bom-mocistas e politicamente corretos.

Porém, é forçoso reconhecer, essa indústria de reciclagem de corpos desviados e de almas tortas amplamente rentável é ainda prima pobre da outra, a da produção em escala de almas e corpos sãos. Cada vez mais especializada, a indústria de invenção da pós-modernidade tornou obsoleto um quase axioma da economia política marxista: o de que a força de trabalho, no império do capital, é explorada à exaustão e ao esgotamento do indivíduo.

Na pós-modernidade, o suporte do indivíduo, seu corpo, pode ter a sobrevida aumentada significativamente, seja pela de substituição de partes danificadas por próteses funcionais, seja pela administração de terapias eficientes contra a fadiga – chegará o tempo em que a imortalidade será a verdadeira maldição do indivíduo, que terá saudades do tempo em que suas forças simplesmente se esgotavam, e em que não havia necessidade de se solicitar licença judicial para morrer.

À sofisticação dos sistemas de produção e reciclagem de corpos e mentes defeituosos a serem normalizados, e ao aumento da durabilidade dos corpos sãos, some-se agora o expediente da invaginação de infinitos eus, das mais diversas constituições, num mesmo indivíduo e obtem-se a fórmula prodigiosa: a da possibilidade de reprodução eficiente e ilimitada dos sistemas de controle e governança de massas e de pessoas.

A indústria de produção de eus vai muito bem, obrigado, seja pela incutição a força ou consentidamente de novos eus em corpos naturais; seja pela articulação entre eus produzidos em série e corpos naturais melhorados por próteses funcionais ou plásticas; seja, não se está longe disso, pelo downloud de potentes eus em ciborgues; ou ainda pela manipulação do genoma humano, cujas fronteiras éticas se está a discutir, mas as quais, sabe-se de antemão, não freqüentam as preocupações dos laboratórios que, pelo mundo, combinam placidamente, na mesma equação, estruturas genéticas e dividendos de patentes.

A possibilidade de reprodução infinita dos sistemas de controle e governança de massas e pessoas por meio da assimilação monótona das trincas desses mesmos sistemas é uma hipótese cuja eficácia depende da neutralização de resistências no nível das intimidades e no nível coletivo. Porém, se algumas resistências são trincas previsíveis de fácil assimilação, outras são inesperadas e nutrem suas existências, muitas vezes efêmera, no caos. Por que, onde, quando, como, com que intermitência ocorrem essas fendas caóticas, não se pode saber.

Imaginemos: em algum ponto do espaço real, alguém sabe e não vai delatar, uma funcionária administrativa, sem razão aparente, vomita as invaginações do mundo, languidamente, convertendo seu corpo em texto artístico a emanar poemas, narrações e lampejos de arte musical tal qual os roedores de pelúcia de um certo conto de Cortázar.

Ainda, em algum momento imprevisível do particípio passado, do gerúndio ou dos futuros, entre o real e o inventado, zona de sombra que não deve ser iluminada, um artista plástico, empapuçado pela incutição de estereótipos humilhantes, assume a governança de suas ações, manda à merda uma porção de pesos mortos, e outro tanto de idiotas, e cai na pândega do Frenetic Dancing Days.

Ainda além, de um modo não suspeitado, já no reino do inventado da caixa preta do cinema, um professor, tendo calculado os passos corretos e o pulo do gato para se livrar com proveito da sala de aula, derrapa, se desequilibra, descamba, perde a governança de si e se envilece por um gato ingrato, ingovernável, ignorante dos sistemas humanos de controle de almas de gatos.

Por alguma razão que não repousa no campo das normalidades, retalhos de reminiscências podem emitir música, lógicas herméticas podem redundar em non sense, regimes sanguinários podem tornar-se galhofa, o eu pode não estar em mim, mas para lá de Marraqueche.

Para o bem ou para o mal, ou para ambos ao mesmo tempo, o caótico pode operar, e isso pode ser muito significativo, ou pode não ter importância nenhuma. E aqui se insinua uma fenda de difícil assimilação, mesmo para uma pós-modernidade afeita à bricolagem: como prever, assimilar e calar o caos?

Se há resistência, é sem anestesia: Madadayo

Se os métodos e mecanismos de incutição, invaginação, controle e governança de almas se vão tornando mais e mais sistemáticos e indolores, o mesmo não se pode dizer das estratégias de resistência do si, o tempo todo e em todo lugar, por dentro e por fora abduzido, acossado, afirmado, amputado, apodrecido, azarado, bisbilhotado, bolinado, bulido,cadastrado, cagado, carimbado, chacoalhado, clonado, coisado, comido, comprado, comprimido, confinado, costurado, currado, cuspido, danado, debulhado, diagnosticado, digerido, digitalizado, dissecado, dissolvido, emparedado, enchido, encurralado, engordado, esfregado, esmurrado, esticado, esvaziado, examinado, fichado, filmado, fodido, fotografado, fuçado, garroteado, grampeado, iludido, invaginado, investigado, lacerado, lipoaspirado, ludibriado, mamado, manipulado, mapeado, matado, morrido, negado, ocupado, odiado, otimizado, padronizado, perfurado, pifado, purgado, quarado, queimado, ralado, rasgado, reconstituído, registrado, rejeitado, revirado, revolvido, sapecado, sodomizado, sujeitado, sumido, taxado, torcido, triturado, tumultuado, tunado, ulcerado, ultrajado, usado, vendido, viciado, volatilizado, xerocado, zoado não necessariamente em ordem alfabética.

Nas estratégias de resistência do si a dor é inevitável e necessária, tanto quanto a “sistemática” é “o” inimigo a ser destruído pelo caos, produtor de colapsos germinantes, único, muitas vezes, em condições de devolver a iniciativa e a governança das ações do si sobre o si ao próprio si.

É impossível ao si dobrar-se sobre si mesmo e converter ações alheias em ações próprias sobre si e sobre os outros sem causar colapsos de variáveis magnitudes em seu próprio interior e no entorno. Assenhorear-se das próprias ações sobre si e sobre outros é inverter fluxos de pressões simbólicas e sociais potentíssimos, o que não se faz sem deflagração de crises ainda maiores, de conseqüências imprevisíveis e que abrigam em seus movimentos destrutivos ondas de variados graus de potência aniquiladora, às quais muitos chamam “dor”.

Quando no início do filme Madadayo o professor de literatura alemã Uchida Hyakken, protagonista da história, ingressa na sala de aula, o ano é de 1943, e instaura um falso diálogo com seus alunos por meio de chistes e ironias, dá um passo decisivo para retomar um certo controle de sua vida que o papel social de docente, nota-se pela tensão entre seu discurso e o de seus futuros ex-alunos, seqüestrou.

Diz ele que renunciará à docência, após décadas de trabalho, porque a venda de seus livros lhe propiciam agora uma renda suficiente para dedicar-se à atividade literária. Trata-se, pois, não de uma aposentadoria, mecanismo pelo qual o sistema produtivo, de forma “indolor”, expele de si o dejeto restante da extração das energias do indivíduo, mas o contrário: um ser que, ainda de posse de muito de suas energias, expele de seu corpo um eu que o colonizava, e rejeita um papel social determinado de fora para dentro.

A segurança demonstrada pelo professor durante a conversa irônica e afetiva com os futuros ex-alunos faz crer que se trata de uma decisão segura, pensada, definitiva, cujas conseqüências e riscos já foram pesados, ajuizados e assumidos. Porém, da cena bem enquadrada e da conversa que inicia o filme, o diretor Akira Kurosawa deixa vazar, pelos enunciados prenhes de ambigüidade, que “juízo”, de um ponto de vista “normal”, não é uma das maiores preocupações do professor, a começar pelo desprezo às convenções em vias de serem vomitadas.

Esse desprezo ganha forma hilária quando o professor, corpo e fala convertidos em textos plenos de expressividade, elabora uma completa paródia do comportamento autoritário vigente na hierarquia institucional.

O discurso caricato sobre a dificuldade de ingressar na sala de aula para lecionar tendo-se antes que vencer o sedicioso apelo do tabaco, o que o faz atrasar-se, alinhava ironia e sarcasmo para coser uma falsa repreensão aos alunos pelo uso de cigarro em sala de aula. Tudo isso enquanto uma deliciosa, translúcida e lenta nuvem de fumaça flutua entre o professor e a turma, atravessando a tela da esquerda para a direita, para deleite do expectador.

Porém, não se despreza um papel social, nem se vomita um eu de modo impune. Principalmente quando esses entes são expressão de acordos sociais que conferem prestígio e segurança: ser professor em uma sociedade que reverencia essa figura e lecionar literatura alemã quando os ventos sopram para os lados da Germânia não são pouca coisa.

Ocorre que, à vida de escritor, desde sempre tendente ao caos, como todos o bem sabem, soma-se o colapso final da Alemanha nazista e o bombardeio da cidade pelas tropas dos EUA. Noutras palavras, à caótica opção de Uchida Hyakken pela carreira de autor acresce a agora caótica opção do Japão pela adesão ao Eixo.

As grandes catástrofes humanitárias são mães de tragédias identitárias em massa, porém, em Madadayo ficam de fora do quadro as demais vividas pelo Japão mercê das opções que fez. Em foco permanece a de Uchida Hyakken, que, talvez para sua maldição, talvez para sua redenção, continuará a ser tratado por professor até o final da película, vítima do afeto salvacionista e invaginatório de seus eternos devedores, que, a um só tempo, fazem o bem e o mal ao objeto de seu apreço.

Os livros de literatura alemã param de vender, a casa de Uchida Hyakken é bombardeada, ele passa a habitar com a esposa um cubículo entre ruínas mas, aparentemente, o professor continua o mesmo, irônico, sarcástico, sem juízo, solidário, fraterno, solícito para com os ex-alunos.

Posteriormente, a invasão americana propicia alguma organização, os livros voltam a vender, segundos os ex-alunos, que se cotizam e propiciam ao mestre e à sua esposa uma casa digna. Despido da função de professor, Uchida Hyakken continua a gozar da majestade, que a comunidade, numa invaginação permanente, não aceita que seja extinta – afinal, quem é esse professor para achar que pode deixar de ser professor? Tudo se normaliza, até que o caos, agora na forma de gato, se insinua pelo buraco da cerca da casa do professor a procura de comida.

A esposa de Uchida Hyakken dá comida ao bichano que não está ali para outra coisa. Depois, organiza um aposento para o bichano. O ex-professor impõe-lhe um nome, Nora, e um afeto excessivamente humano para que não dê com os burros n’água.

O gato, que tem suas próprias gatitudes e gatimanhas, que não sabe que tem nome e menos ainda que o estão invaginando com humanidades interesseiras em dividendos de afetos felinos, dá o pinote, some ou simplesmente é roubado.

O caos trouxe o gato, caos levou o gato

Nenhuma lógica empregada pelo ex-professor, por sua esposa ou pelos ex-alunos surte efeito. E o ex-professor se desconstrói, se estiola, se envilece, adoece da emoção, periclita do espirito, deleixa do corpo.

Adeus ironia inventada como estratégia de resistência, adeus sarcasmo como arma de ataque, adeus humor, adeus força moral, adeus valores, adeus cuidados com a barba, adeus cuidados com o corpo, artifícios de um eu inventado pelo si Uchida Hyakken para revidar às incutições do mundo.

A possibilidade de falência geral do ex-professor preocupa os ex-alunos, que o continuam a tratar por professor, para continuarem a gozar da identidade de alunos, da qual também não conseguem se livrar, nem querem.

Porém, a arte é o reino do arbitrário fingido: se o caos pôde trazer gaoticamente um gato por um buraco de cerca e o levá-lo sabe-se lá por que outro, pode então introduzir pela mesma fenda um outro gato, irônica paródia do primeiro.

Se a cor do pêlo não coincide, se esse novo bichano não vai dar no pinote, sumir ou ser roubado como o primeiro, ou se ele vai ganhar um nome que sequer a esposa consegue pronunciar corretamente, não interessa: o efeito cômico foi conquistado e a saúde física, psíquica, moral, espiritual do ex-professor está preservada, não por suas estratégias, mas pelo acaso – muito embora aqui se trate de um acaso inventado pelo diretor do filme.

Mergulhados literalmente de corpo e alma numa relação simultaneamente comovente e perniciosa, de dependência e de solidariedade, de solenidade e de galhofa, de respeito e de invasão, de gratidão e de inadimplência moral eterna, de reverência e de subserviência, os eus envolvidos retomam a normalidade de uma convivência muito particular, que os faz feliz e que os faz existir enquanto comunidade específica, empenhada com todas as forças em se preservar no tempo o quanto possa, com todas as vantagens e vicissitudes inerentes a essa opção pela permanência numa comunhão em cujos membros podem falar de coração para coração porque concordaram tacitamente em invadir e em se deixarem invadir simbolicamente pelo outro, como também assentiram em agir sobre a ação do outro, consentindo com a ação do outro sobre a suas próprias ações.

A ritualização paródica dessa relação nas festas de anos do ex-professor elide o conjunto de penetrações simbólicas do qual Uchida Hyakken é destino mas também origem.

Ele, que a um determinado momento só desejou deixar a sala de aula para se realizar enquanto escritor, consente, sem qualquer resistência, ocupar papel central em um compromisso, a repetir-se ano após ano, no qual terá de ingerir uma enorme taça de cerveja após o que responder à pergunta: “Madakai?” – Está pronto (para morrer)? A resposta à pergunta ritualística-irônica, até o fim será: “Madadayo” – Ainda não.

Os únicos espaços de tempo representados entre a primeira celebração-simulacro, quando do 60o. ano de idade de Uchida Hyakken, e a que encerra o filme, quando o protagonista, alquebrado pelos anos, reafirma sua disposição de nunca estar pronto para a morte, são aqueles imediatamente sucedâneos à sua renúncia ao cargo de professor de literatura alemã, que enfeixam as dificuldades econômicas resultantes de usa opção, a perda da casa por bombardeio, a conquista da casa nova auxiliada pelos ex-alunos e pela regularização do pagamento dos direitos autorais (o que poder ser uma mentira generosa dos pupilos) e a crise do gato Nora e a reequilibração do si. Tudo mais, entre a conclusão dessa crise e a celebração do 77o. do ex-professor some da tela.

Ao que tudo indica, Uchida Hyakken obteve sucesso na opção extremamente dolorosa que fez pois, ao final da película, é retratado como intelectual digno e sem maiores transtornos materiais, o que faz supor êxito na carreira de autor.

Akira Kurosawa, arbitrariamente decepa o meio do processo residente nesse lapso, apresentando ao público o início e o talvez fim, já que a cena final é prenhe de sugestões conclusivas, quer no que tange à diegese fílmica, quer no que tange às possíveis extrapolações que o simbolismo inerente à ela propicia.

Na sala, os ex-alunos, inconseqüente alegres, seguem a lição do mestre, sorvendo do álcool numa irreverência assumidamente postiça, convertida em estratégia de resistência de grupo. A esposa é tirada de cena pelo diretor para não atrapalhar.

Na liteira, o corpo do ex-professor, alquebrado mas também embriagado, talvez adormecido, talvez morto, mostra-se sereno. Em sonho maravilhoso, de céu cambiante e de tons extasiantes, Uchida Hyakken se vê comoventemente menino brincando de esconde-esconde em montes de feno com amigos de infância. Os amigos perguntam se ele está pronto para ser procurado (em nossa brincadeira por estes lados brasileiros do ocidente dizemos: “Pode ir”?):

- Madakai?

O menino carequinha, entre montes de feno, procurando o melhor esconderijo responde:

- Madadayo!

Uma fenda rasa e algo escura no capim seco se insinua, o menino a penetra e começa a se cobrir de mato seco. Já quase todo envolvido pelo feno, se deixa surpreender pelo céu onírico, os olhos penetrados de tons perturbadores.

Tomado pela emoção e governado pelas cores impressionantes, talvez impressionistas fosse o melhor termo, renuncia ao esconderijo e penetra a atmosfera acolhedora sob um céu de tons e sobretons quentes, que ameaçam turvar-se, mas que não se turvam. Madadayo: ele ainda não está pronto.

Dói, mas isso é tão ruim assim?

As estratégias do ex-professor para assumir o máximo controle de suas próprias ações, e por conseguinte de sua própria vida, tem eco em uma gama considerável de intelectuais cujas obras fecundaram o século XX com a fogueira inconveniente do descontentamento. Face a face com regimes totalitários, o motor de suas reflexões e de suas ousadias repousou muitas vezes apenas na fé intelectual de que a batalha contra o sufocamento das liberdades tinha de ser vencida de dentro para fora, a partir do principal campo de disputa: o corpo e a intimidade de cada um.

Em seu Os frutos da terra, na tradução para o português, André Gide trata dessa batalha plena de crises identitiárias e de riscos de diluição :

"Há proveito a se tirar tanto dos desejos quanto da saciedade deles, porque esta só faz aumentar aqueles. Por isso, em verdade vos digo, Natanael, cada desejo me enriquece mais do que a posse sempre enganosa do objeto de meu desejo.

Não falo da simpatia, Natanael : falo do amor.

Por tantas coisas deliciosas, Natanael, usei-me do amor. O explendor delas advinha de eu arder incessantemente por elas. Não tinha como me entediar. Toda fogueira me era um exaustão amorosa, deliciosa exaustão.

Herético entre os heréticos, todo o sempre me atraíram as opiniões contundentes, os arriscados atalhos do pensamento, as divergências. Cada espírito não me interessava, salvo por aquilo em que se diferenciava de outros. Cheguei a explusar de mim a simpatia, não reconhecendo nela senão uma emoção barata. - Não falo da simpatia, Natanael, falo do amor.

É preciso agir sem julgar se a ação é boa ou má. É preciso amar sem se importar se isso é o bem ou o mal Natanael, eu vou te ensinar o que é a fogueira.

É peferível, Natanael, uma existência patética à tranquilidade. Não quero outro descanso além do sono da morte. Tenho horror de que toda ânsia, toda potência que eu não tenha exaurido durante minha vida, pela razão mesma de terem restado vivas, me atormentem. Eu ‘espero’, depois de ter exprimido sobre esta terra tudo que havia dentro de mim, satisfeito, morrer completamente ‘des-esperado’.

Não falo da simpatia, Natanael, falo do amor. Tu sabes muito bem que não são as mesmas coisas. É por medo de uma perda amorosa que às vezes eu simpatizei com a tristeza, com os aborrecimentos, com as dores difíceis de agüentar de outra maneira. – Deixe a cada um o direito de cuidar de sua vida."

Ao ousar abandonar o magistério, exercido com paixão e risco por décadas, o ex-professor não faz outra coisa senão atirar-se a outra paixão, não por simpatia – o que envolve um distanciamento em que é indisfarçável a presença do interesse sobriamente calculado – mas por amor, esse sentimento povoado de caos.

Se isso dará ou não certo, não é a questão. A questão é que uma profissão exercida com paixão e cuja temperatura vai distando do pondo de fervura será desalojada da intimidade em favor não de uma emoção barata, mas de uma aventura ardente, certa de riscos e que potencialmente pode incinerar Uchida Hyakken até que ele se torne poeira.

A frustração imediata que se segue à opção de assumir a carreira autoral pouco quer dizer, porque para o ex-professor, mais importante do que largar a muleta da docência e viver efetivamente dos livros é o desejo de ser escritor, que não morre com o colapso do Japão bombardeado, nem com o sumiço do gato, nem com os anos que pesam sobre seu corpo como uma maldição.

O que importa é ser fogueira, é arder, é estar vivo para o que o faz viver.

O ex-professor ama, não simpatiza, o que faz, e só o faz enquanto ama. Lecionando ou garatujando seus papéis, ama “o que” e “os que” escolhe amar, seja ante os alunos cheios de suas, deles, próprias invaginações, seja ante a folha de papel em branco a espera das letras; ama seja a esposa, sejam os alunos, sejam os gatos, sem se preocupar se isso o levará a um cubículo bombardeado pelas tropas americanas ou ao hospício.

E se flertou com a tristeza, com os aborrecimentos e com a dor, foi pelo medo da perda ou em conseqüência dela, não pelo medo de arder na fogueira do sincero amor por si e pelo outro.

O poder de convencimento dos discursos de Uchida Hyakken não vem de sua condição de tutor de almas, função institucional que ele rejeita mesmo antes de decidir renunciar à cátedra – daí a afeição dos alunos pelo professor ‘desajuizado’. A eficácia de seus enunciados ambíguos reside na heresia de, a partir do locus privilegiado que ocupa na instituição, proferir uma missa que se autodenuncia como postiça, que flerta com a bufonaria e que em português do dia-a-dia poderíamos chamar, de coração alegre, de uma ardilosa e santa avacalhação da academia.

Arlequim a contrabandear opiniões ácidas, idéias ferinas e comportamentos erráticos sob a roupagem insuspeitável de professor ilustrado, Uchida Hyakken, filósofo- palhaço, aos 60 anos, prefere a vida patética de escritor na corda bamba à modorra da academia que ele só não rejeitara antes por profundo amor, não simpatia, a seus alunos, perfeitos desajustados a renderem preito à literatura alemã na terra dos samurais.

Preferiu e segue confirmando a escolha até a cena final, quando não se dá por totalmente exprimido sobre a terra nem “des-esperado”, nas palavras de Gide, já que em sonho os matizes do céu onírico o encantam, penetram e inundam em abundância e, à sala, seus ex-alunos o aguardam entre risos alcoólicos e tragos sorvidos com imenso prazer.

Em mais de duas horas de filme, assiste-se a um respeitável professor despir-se das convenções inerentes ao papel social a que se sujeitou por décadas, expor-se ao ridículo diante de seus alunos, cambalear com eles no álcool, rastejar na sarjeta moral, descuidar do próprio corpo, deixar-se amparar como um trapo humano e se reconstituir a partir das próprias energias emocionais, morais, intelectuais e físicas perfuradas, penetradas e invadidas pelo amor dos outros.

A metáfora da cena final é de uma força perturbadora: Uchida Hyakken, untado por dentro de um banho maravilhoso de cores, volta em sonho a ser menino, depois de se dissolver ardendo, se recompor doendo e acolher em seu corpo todos os efeitos, lanhuras e fissuras inescapáveis no roteiro de quem ousa a liberdade, entendida aqui como luta por domínio e posse das próprias ações de si sobre si mesmo e sobre o próprio corpo – tanto quanto isso é factível, se é que isso é mesmo factível.

A trajetória do protagonista de Madadayo faz compreender porque muito da filosofia e da poesia contemporânea não aceita a liberdade dissociada da do mal-estar, da angústia e do sofrimento: Quem quer passar pelo Bojador, tem que passar além da dor, ensina Pessoa.

Impossível, no ponto a que chegou este ensaio, não fechar os olhos e não ouvir, lá do escuro fundo da memória, a voz roufenha de Ângela Rorô a embalar estas palavras finais:

“Deixa eu penar, liberdade está na dor”.



BIBLIOGRAFIA

Bauman, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2005.
Dreifus, H; Rabinow, P. Michel Foucault, uma trajetória filosófica. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995.
Gide, André. Les nourritures terrestres. Paris. Librairie Gallimard, 1939.
Hall, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A, 2003.
Rago, M.; Orlandi, L. B.; Veiga-Neto, A. (orgs.). Imagens de Foucault e Deleuze. Rio de Janeiro, DP&A, 2002.
Silva, T. T. (org.) Liberdades reguladas. Petrópolis, Vozes, 1998.
Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte, Autêntica, 2001.

MADADAYO
Título Original: Madadayo. País de Origem: Japão. Ano: 1993. Duração: 134min. Diretor: Akira Kurosawa.Elenco: Hisashi Igawa, Kyôko Kagawa , Tatsuo Matsumura, George Tokoro. Colorido.