sábado, 11 de junho de 2011

Carta de Brasília*

23/11/2003
Reorganizar, avançar e crescer

Após 13 anos de desarticulação, ressurge com força no cenário cultural brasileiro o movimento cineclubista, em sua Jornada de Reorganização, em Brasília. Se essa desarticulação se deve em grande medida às políticas generalizadamente desastrosas, em particular para a área do audiovisual, se deve também, e as discussões desta Jornada de Reorganização o demonstraram, a outros fatores, quer relacionados a insuficiências do próprio movimento, quer relacionados a fatores mais gerais em escala global, que envolvem desde políticas de governo e de Estado a questões relacionadas ao vertiginoso desenvolvimento tecnológico dos últimos anos.

Podemos dizer que se não vivemos um período de coma algumas vezes profunda, não estivemos distantes disso. Uma cinematografia que produziu quase 100 longas/ano, numa só canetada, foi a zero, literalmente.

Felizmente estamos vivendo um novo tempo, e tudo nos parece, agora que nos reencontramos, como um longo pesadelo, melancolicamente esgotado, do qual despertamos e o qual já vamos deixando para trás.

A ação do Estado na modernização da legislação do audiovisual, a instituição da ANCINAV, num contexto de retomada vigorosa do cinema brasileiro, demonstra que existe de fato vontade política do governo federal de reestruturar e democratizar o setor em todos os níveis e elos da cadeia produtiva, da produção à exibição, da difusão ao ensino, ação que em muito se deveu à pressão organizada pela ABD-Nacional, ao Congresso Brasileiro de Cinema entre outras entidades.

No mundo atual, os parâmetros da globalização têm a pretensão de moldar as normas do viver e do com-viver das sociedades, com propósito de uma “interação mundial” bastante particular e cujos efeitos vamos conhecendo mais ampla e profundamente nestes inícios de anos 2000.

Parte essencial dessa mundialização, as novas tecnologias da comunicação, propiciadoras de acesso imediato às informações e ao entretenimento numa abundância nunca suspeitada, exercem papel predominante nessa instantânea interação, ao mesmo tempo fascinante e ameaçadora.

Todavia, essa interação tem sido feita em detrimento das experiências locais, comunitárias e mesmo nacionais, do que tem resultado, para estes lados do Ocidente, uma hamburguerização cultural inaceitável.

As identidades locais, comunitárias, nacionais, precisam florescer, e as tecnologias hoje disponíveis podem auxiliar e muito nesse florescer cultural.

Sob esse aspecto, é evidente a necessidade de criação e de vitalização de espaços culturais e de convívio  que articulem a democratização do fazer e do fruir cultural relacionados ao cinema e às tecnologias audiovisuais, em particular o movimento de imagens, que envolve da compreensão da obra exibida ao domínio progressivo do fazer.

Consciente dos meios técnicos e de posse de certo fazer, o público tem condições de desenvolver sua consciência crítica em relação ao cinema, à TV e às demais tecnologias audiovisuais, tão importantes na construção da identidade e da autoimagem individual e coletiva.

A prática cineclubista sempre teve e tem em seu horizonte a inclusão social, palavra tão em moda atualmente. Não há parte em que a atividade cineclubista se tenha desenvolvido em que não tenha havido mobilização, organização, difusão e produção cultural livre e dinâmica, e que não tenha tido como resultado a formação de indivíduos participativos e de público crítico.

O cinema, a imagem em movimento, além de ser objeto comercial e industrial é acima de tudo arte, fonte expressiva de cultura, ele não existe sozinho, e pode trazer consigo a memória e a luta pela construção da identidade de indivíduos, de comunidades locais, de grupos sociais e de culturas, enfim de todo um povo.

O cinema, o vídeo –  em VHS, DVD, cibernético ou via satélite – e a televisão, associados às linguagens escrita e sonora, permitem a apreensão e a compreensão do mundo até mesmo por aqueles excluídos do mundo das letras.

Por isso, a linguagem cinematográfica, e seus congêneres, pode e deve ser instrumento de democratização da cultura humana em geral e das manifestações de grupos sociais e culturais em particular – democratização que envolve acesso não só aos meios de exibição, mas também aos de produção e aos de organização em torno de objetivos específicos.

E nada mais oportuno hoje do que as instituições historicamente organizadas voltarem a ocupar seu espaço.

O cinceclubismo entende que não é suficiente ter televisão, vídeo ou DVD, ou ainda dinheiro para ir ao cinema: é necessário ter um domínio crescente da gramática audiovisual, ter consciência dos mecanismos e processos de produção audiovisual e educar-se para a organização em entidades que lutem pela democratização da produção, da difusão e do saber relacionados ao cinema, à televisão, à fotografia e às novas mídias e técnicas audiovisuais, o que não se faz sem reflexão crítica e sem ação transformadora, que é o que, em resumo, estamos realizando nesta Jornada de Reorganização do Movimento Cineclubista Brasileiro.

Para que cineclubes existam de fato e de lei, vários são os aspectos a considerar, desde a constituição formal, até os mínimos aspectos relacionados ao cotidiano de uma entidade, tais como a capacitação humana, a programação, a divulgação, a preservação da memória, a pesquisa, a produção, a autonomia para gerir, propor, administrar e obter respostas positivas dos setores envolvidos em todas as etapas e facetas das atividades afins: realização de cursos, seminários, exibições, debates, e principalmente iniciativas para a formação de platéia, o que permitirá, assim, a constituição de um novo modo de olhar a história da cultura brasileira.

E se o que propomos encontra acolhida em necessidades gerais da economia do audiovisual, mais ainda a encontra nas imensas necessidades da população brasileira, em sua maioria privada não só de comida, mas também de diversão e arte. E esse não atendimento de demandas simbólicas tão essenciais sujeita o indivíduo a uma profunda miséria espiritual, a uma semioexclusão que em nada fica a dever às correntes da escravidão física, que em outros tempos não tão distantes da nossa história caracterizaram a situação de nossa classe trabalhadora.

O que propomos nesta Jornada Nacional de Reorganização tem sua razão de ser apoiada na compreensão de que o público necessita participar de modo ativo não só da fruição, mas também da produção simbólica do Brasil, que envolve elementos de reconhecimento de autoimagem e de construção e transformação de identidade. Isso não pode ser feito condenando-se o público a ser eterno expectador acrítico de obras audiovisuais, é preciso que ele entenda de cinema como entende de seu esporte predileto: como público crítico e como coautor.

A luz essencial do cinema, a final de contas, é gente, são as pessoas. Sem gente não há brilho, só há sala escura. Todavia as pessoas não têm tido seu potencial de envolvimento com as atividades audiovisuais respeitado. Os grandes conglomerados de comunicação estabelecem uma via de mão única com o público, de cima para baixo, opressiva, massacarante, escravizante, alienante.

Neste momento de arejamento da vida cultural brasileira, é bem hora de se lutar pela democratização de tudo que envolve a produção e a difusão audiovisual. Democratização significa participação, acesso aos meios de produção e de difusão, espaço para o debate, a crítica e a ação transformadora coletiva. É preciso que o público ilumine o cinema com sua luz e o aqueça com seu calor, que vem de sua luta, de sua esperança e fé no futuro.

Nesta nova fase que se abre larga e plena de possibilidades para o cineclubismo brasileiro, pretendemos exibir, discutir, estudar e produzir, tendo presente em nossos espíritos a necessidade e a possibilidade de contribuir, com modéstia, mas com combatividade, a identidade brasileira nas telas do cinema e da televisão, seja como for, em 35, 16, Super 8mm, vídeo, digital, via satélite ou o que vier.

Cineclube é a casa do cinema, lugar onde se exibe filmes, se estuda, se forma espectadores e mão-de-obra especializada para o cinema e para a ação cultural militante e voluntária. É o lugar onde é possível, ver e rever novos e antigos filmes e amigos. É o lugar onde a magia da sala escura permanece inalterada, com luz na tela e no coração das pessoas. Cineclube é o ponto de encontro, é o oxigênio da atividade cinematográfica, o lugar de troca de experiências.

Mas o cinema só existe quando o filme ganha a tela à frente do público, que se estiver alienado, estará em parte cego, em parte morto, não só para as imagem que se movimentam à sua frente, mas para a sua própria identidade e para o seu papel de agente da vida de sua cidade, de seu país, do mundo, enfim, da história – esta palavra que andou esquecida nestes últimos anos de pensamento único, e que estamos neste momento, em suma, resgatando.
Viva o movimento cineclubista brasileiro!
Viva o cinema brasileiro!
 Plenária Final da
24ª. Jornada Nacional de Cineclubes
Hotel Nacional
Brasília, 23 de novembro de 2003.
* A Plenária da 24ª. Jornada Nacional de Cineclubes atribuiu a redação da Carta de Brasília a mim (Jeosafá F. Gonçalves) e a Berê Bahia. A Carta foi aprovada por unamimedade e aclamação.

Manifesto à 25a. Jornada Nacional: Um novo cineclubismo

2/12/2004

Gente é o que importa
ou, noutras palavras,
O maior capital do homem é o próprio homem
(Marx)

Parte desta nova fase de aprofundamento da democracia brasileira, iniciada com a eleição de Lula e a retomada do cinema brasileiro, a rearticulação do movimento cineclubista não se faz sem contradições, seja pela necessidade de que o passado do movimento seja criticado vigorosamente em tudo que foi de limitado e insuficiente, seja pela manifestação hoje de novas experiências que não podem nem devem ser mutiladas para que sejam encaixadas a fórceps a velhos e ultrapassados formatos e métodos, que se ufanavam pelas decisões de petit comité (que, aliás, no francês significa, literalmente, comissão secreta – para quem se interessar, ver o Dic. Francês/Port. da Bertrand), que tantos estragos fez ao movimento e que reflete uma prática cupulista, useira e vezeira de atropelar decisões coletivas, sempre em favor de articulações de curto alcance, verticalizadas e de mão única: de cima para baixo.

Essa rearticulação geral do movimento de forma mais combativa, que inclui as novas mídias e fortemente a produção, não se fará sem o embate entre novas experiências que precisam florescer e o que resta de ultrapassado nos corações e mentes. É absolutamente inevitável que práticas de petit comité queiram não apenas sobreviver como também condicionar o conjunto do movimento que estamos lutando para pôr de pé, como também é inevitável que as novas experiências e seus agentes se movam e lutem por fazer saltar, de baixo para cima, tudo que as impede de vir á luz.

O cineclubismo anterior a esta fase que estamos vivendo faliu, inviabilizou-se e amofinou-se na inanição por razões objetivas e por suas próprias deficiências. As instituições desse cineclubismo conservador morreram porque não correspondiam às necessidades urgentes do movimento, que, por isso, prosseguiu espontâneo e viveu uma década de iniciativas dispersas e desarticuladas, algumas de significativa relevância.

Retomar o movimento agora e submetê-lo às mesmas formas, estruturas e instituições que caducaram é condená-lo à artificialidade, ao engessamento, é condenar o horizonte largo ao horizonte estreito. Com o que não se pode concordar, nem se pode permitir.

Há uma larga diversidade de experiências cineclubistas pelo Brasil. Os agentes que as promovem, no mais das vezes, nem sequer intuem a natureza e a profundidade do que estão a realizar – e tudo que fazem é parte dessa luta pela descoisificação do público, do realizador, da obra cinematográfica enfim.

É preciso e urgente que reunamos toda essa gama de experiências variadas inusitadas, vivas, que ora são coletivas, ora são individuais, mas todas significativas e em perspectiva potencializadoras do nosso movimento.

Essas experiências devem ser reconhecidas e incorporadas pelas instituições que organizarmos: tela, seja a que for, de lençol ou cristal líquido; ação, a que for efetiva, da produção à crítica, da exibição à educação.

Numa expressão: o velho cineclubismo parou no reconhecimento da entidade cineclubista, e não foi além disso. Burocratizou-se e estabeleceu um limite estreito, curto e raso para o movimento, que a rigor não era, nessa perspectiva, cineclubista, mas de entidades cineclubistas, de cineclubes, o que circunscreveu o cineclubismo a um movimento exclusivamente de entidades – e, mesmo assim, nem de todo tipo.

Sem dúvidas que é necessária a organização de cineclubes, e que haja fóruns para cineclubes decidirem seus rumos. Porém, cineclubes não nascem em árvores: são obra de ação humana. Sem cineclubista não há cineclube.

É urgente que construamos entidades de base do movimento, ou seja, cineclubes, com a maior liberdade de organização possível e imaginável. E igualmente é urgente organizar formas de representação cineclubista – não apenas de cineclubes –, pois são eles os que devem dizer o que o movimento deve ou não ser, e não o contrário.

Que natureza, que objetivos, que configuração terão nossas entidades são questões de responsabilidade do cineclubista, dos que estão e dos que virão agregar-se a esse esforço cidadão de constituir instituições que lutem pelo aprofundamento de nossa democracia, sempre tão periclitante.

Nos fóruns antigos do movimento, o cineclubista não votava, votava apenas o representante do cineclube. É o que desejamos para o nosso movimento hoje? Constituiremos uma comissão de notáveis a decidir o que é ou não o movimento, ou todos os cineclubistas, com pleno uso do voto o decidirão? Estamos abertos às novas experiências, reconhecemos sua importância vital, validamos suas práticas e lhes franqueamos totalmente o movimento, ou pomos na porta do movimento uma catraca, protegida por um segurança encarquilhado a cobrar carteirinha de associado ao petit comité? Queremos mais gente se tornando cineclubista já, participando de jornadas centradas nas questões essenciais do movimento, ou desejamos, o que já vem ocorrendo, administrar a crescente exclusão de pessoas de nossos fóruns, voltados às lógicas que perderam a validade há mais de 14 anos? Queremos um Estado que fomente ou que tutele?

Portas abertas aos novos cineclubistas: quer virar cineclubista? Pode.
É cineclubista? Vota.
  • Por entidades de cineclubistas, estaduais e nacional, e não apenas de cineclubes.
  • Por jornadas de cineclubistas, estaduais e nacionais, e não apenas de cineclubes.
  • Por um forte movimento de formação de novos contingentes de cineclubistas, e não apenas de cineclubes.
  • Por uma política para o movimento que tenha como centro o cineclubismo, plural, amplo, democrático, diversificado, com toda sua riqueza de experiências, natureza e formato, que reconheça, respeite e incorpore os contrários.
  • Por um debate sobre o que são o cineclubismo, o cineclubista, e os cineclubes, debate franco, aberto, sem esquematismos ou apegos a fórmulas excludentes, e que resulte em novas instituições representativas do movimento.


Somente gente pode reativar nosso movimento com a força de que ele necessita para desempenhar o papel que pode e deve.
Gente, gente, gente. Gente votando.
E quanto mais, melhor. Não temos nada a perder, temos um mundo a ganhar.

(Assinam diversos cineclubes cineclubistas do Brasil)

Cinema e literatura: Drummond e Garbo

15/1/2006  

Após o cinema, a literatura nunca mais foi a mesma. Se, num primeiro momento, muito da práxis literária – e teatral e circense – foi apropriada pelo cinema, após isso a literatura voltou-se para o telão com olhos gulosos e muitos temeram que ela se perdesse nele como uma Alice através do espelho. Nos grandes centros de produção cinematográfica mundial, a profissão de escritor ganhou um novo nicho, o de roteirista, e não foram poucos que escrever com o objetivo de ver seus livros filmados, suprema glória e consagração de um ficcionista.

A incorporação da literatura nas artes cinematográficas durante o século XX foi profunda, ampla e em quantidade, e disso resultou que, a partir de um certo instante, o fluxo se invertesse, com a literatura passando a incorporar antropofagicamente temas, técnicas, formas, mitos, elementos de linguagem já desenvolvidos estritamente pelo cinema.

Com o evento do cinema, a humanidade passou a receber nos olhos imagens nunca antes sequer sonhadas, e essas imagens se ofereceram a um público sempre crescente em quantidades espetaculares, a partir da instalação de uma indústria vigorosa e de um circuito exibidor amplo e distribuído por todo o mundo.

Aos escritores, poetas ou prosadores, por sua vez, o cinema se ofereceu como um manancial inesgotável de possibilidades temáticas, composicionais, e ainda como laboratório de técnicas, muitas das quais por eles experimentadas em seus textos em estado bruto ou traduzidas com adaptações para as necessidades expressivas das artes literárias. Bem, que Holywood empregou uma grande quantidade de escritores consagrados para adaptar seus deles próprios filmes, todos o sabem.

Uma dos mais óbvios empréstimos feitos pela literatura ao cinema diz respeito às divas. Escritores e mais escritores, mergulhados na sala escura, sentiram seus corações dispararem a cada entrada em cena de, digamos como exemplo, Greta Garbo. Esse tipo cruel de mulher insubmissa, dominadora, fria etc. etc. etc., causadora de estranheza a um público masculino embalado por delírios machistas, deu ensejo a mais de um texto em prosa ou verso, podem crer.

Para ficar no Brasil, falemos de Drummond. Cito de memória.

Na década de 1980 o Arquivo Público Mineiro, publicou um volume de crônicas de Drummond, inéditas em livro, do período 1930-1936. Estou certo de que a iniciativa coube a Hélio Gravatá – quem descobrir que errei, pode falar mal, aliás, quem quiser falar mal, pode fazê-lo, mesmo que eu não me tenha enganado.

O livro é muito bem feito, com ilustrações de época que são realmente muito sugestivas. Numa dessas crônicas, o poeta descompõe as formas maiúsculas de Greta Garbo, mas logo se vê que ele a elogia pelo inverso, o que o final da crônica não deixa escapar. Ela completaria 100 anos em 2005, ela a atriz, não a crônica.

Não é a única referência de Drummond nem a Garbo nem ao cinema. Aliás, em Confissões de Minas, seu primeiro livro em prosa, numa das crônicas dedicadas a reminiscências da infância, o poeta lamenta o impacto da chegada do cinema a sua Itabira do Mato Dentro, evento que, a depreender da lamentação, liquidou o poético teatro “amador” que lá se realizava.

As relações entre e cinema e literatura, por óbvias, têm sido bastante estudadas, principalmente no âmbito do cinema. Os grandes festivais sempre dedicam espaço ao assunto – embora o inverso nem sempre seja verdade: pouquíssimos congressos literários dedicam ao cinema igual reverência. Nos últimos tempos tenho feito o inverso: tenho procurado localizar elementos do cinema apropriados devida ou indevidamente pela literatura. Algumas incorporações saltam aos olhos, como a aqui citada, sem maiores dificuldades, outras, porém, são de observação difícil – e de comprovação ainda mais, pois dizem respeito a processos sutis, relacionados à produção de sentidos. Para se ter uma idéia, Hauser considera que o flash Back, técnica eminente cinematográfica, foi inventada por... Proust, de Em busca do tempo perdido.Voltarei a esse assunto futuramente.

Termino este artigo com Drummond e Garbo: é muito significativo que, em suas primeiras crônicas, o poeta mineiro elogie tão canhestramente – vai, Carlos, ser gauche na vida – a diva de Ana Karenina, e é ainda mais significativo que, em seu último livro, volte à atriz sueca, num poema nada enigmático. Também voltarei a este assunto.

Ninguém aprende samba no colégio, infelizmente

8/1/2006 

A alusão ao samba de Noel Rosa, no título deste artigo, não é sem propósito. Sendo o samba, e o futebol, um dos componentes do DNA da identidade brasileira, a ironia do poeta da Vila é de deixar triste e cabisbaixo qualquer um que ame a cultura popular.

Noel não se fez de rogado ao expor ao ridículo a tendência das elites culturais tupiniquins da época em afrancesar-se ou americanizar-se para se parecerem sofisticadas. Dizia ele num de seus sambas, eternizado na voz de Aracy de Almeida:

Amor lá no morro é amor pra chuchu

As rimas do samba não são I love you

E esse negócio de alô,

Alô boy, alô Johny

Só pode ser conversa de telefone

Ao mesmo tempo que faz galhofa do vazio moral dessas elites, acusa também a cultura oficial escolar, preocupada em macaquear uma tradição que pouco lhe diz respeito e que, em contato com a realidade social brasileira, figura-se ridícula, porque postiça: não se aprende samba no colégio porque não seja legítimo, mas porque o colégio está atolado no pedantismo que rejeita o Brasil real, com sua originalidade, em favor de um “glacê” simbólico que, deslocado do país de origem, não significa nada, ou antes, indica uma moléstia congênita e atroz, que Nelson Rodrigues definiu agudamente como sendo “complexo de cachorro vira-lata”.

Ora, que nos idos dos anos 20 do século passado não se ensinasse samba no colégio é compreensível, embora não justificável. Agora, que depois da Revolução de 30, do golpe do Estado Novo, da redemocratização pós Segunda Guerra, dos anos JK, de uma nova ditadura ainda mais cruel que a primeira, de novo período de redemocratização dos anos 80, que depois de Noel Rosa, Nelson Rodrigues, para não estender demais as citações, ainda não se ensine samba no colégio... é para lá de lamentável.

Quem não sabe que em sociedade letrada a cultura apóia-se no sistema educacional? Grande parte da vida de crianças e adolescentes é, nos dias atuais, vivida no interior da escola, o que significa dizer que aquilo que é experimentado no âmbito dela tem peso decisivo na formação de gerações e gerações de brasileiros.

Porém, qual é mesmo a atenção que se tem dado a que nosso sistema educacional volte-se para elementos formativos do povo brasileiro? Reclama-se do mau gosto generalizado que crescentemente propicia o sucesso do lixo cultural em volumes astronômicos, a congestionar a programação de rádio e TV. A que se deve essa situação senão ao fato de que hoje não se aprende samba nem no colégio nem em praticamente nenhum outro canto? A música brasileira sobrevive à margem do sistema educacional oficial e graças a gênios surgidos fora do colégio – a maioria já passada dos 50 anos e que vai deixando raros herdeiros.

Num momento em que a luta contra o analfabetismo e pela consolidação de uma cultura escolar mais consistente ganha relevo, seria alvissareiro que o Brasil pulasse os muros da escola de fora para dentro, porque, parafraseando agora Simone de Bouvoir, quer era francesa, mas nunca foi glacê cultural, não se nasce brasileiro: torna-se brasileiro.

É preciso, sim, ensinar samba no colégio (samba, aqui, é metáfora, colégio não): sua história, suas narrativas, seus temas e formas, seus poetas e intérpretes, pois a função da escola no Brasil não é formar um cidadão abstrato, ascético e anticéptico – que é o que se depreende da maioria dos atuais projetos pedagógicos das instituições de ensino oficial –, mas formar um cidadão brasileiro, cuja identidade é hoje indissociável da música brasileira, das cantigas de ninar à música instrumental.

Falei disso tudo para falar de outra coisa, o que dá na mesmo: se não é possível ser brasileiro sem o condimento da música brasileira, que dizer do nosso patrimônio audiovisual? Se é uma aberração que não se ensine samba nas escolas básicas brasileiras, é também anomalia bizarra que brasileiros, mergulhados numa cultura cada vez mais audiovisual, saiam analfabetos dessa gramática ao fim de 11 (agora 12) anos de escolarização – isso porque a expressão “inclusão digital” anda na moda... Crianças e adolescentes passam horas preciosas de suas vidas em frente de uma TV e não são capazes de saber se os estão fazendo de idiota ou outra coisa – e outra coisa, aqui, seria uma bênção.

Quem é que não sabe que o audiovisual é um setor estratégico para uma nação? Como é que se quer formar um “cidadão crítico” (os projetos pedagógicos amam essa expressão), se crianças e adolescentes são privados do be-a-ba da gramática audiovisual? Como ser crítico, ou antes, como ser cidadão, estando-se condenado ao analfabetismo desse idioma que já é mais universal que o inglês?

Formar público para nossa música e para nossas produções audiovisuais, de TV e de cinema, é, sim, obrigação de nossas escolas de ensino Fundamental e Médio. E se esses dois componentes genéticos do Brasil ainda não foram incorporados aos currículos oficiais, agradeçamos aos nossos sonolentos legisladores e aos nossos governantes faltos daquilo que Machado de Assis chamou “instinto de nacionalidade”, todos eles discípulos do malandro ironizado por Noel Rosa que: “Deixou de sambar dando pinote/ na gafieira dançando o foxtrote”.

Cineclubismo: caráter militante

25/12/2005 

À natureza nacional e democrática das práticas e ações cineclubistas soma-se ainda outra: a militante. Se as duas primeiras assumem características mais objetivas, esta última põe em relevo um aspecto subjetivo do movimento, mais relacionado à opção consciente, livre e voluntária, de indivíduos ou de conjuntos deles, de engajar-se na defesa de causas assumidas como justas.

Desde que ninguém está obrigado a participar de um movimento social ou cultural, qualquer que seja ele, aqueles que o fazem agem sob o império de suas próprias inclinações, o que é já em princípio manifestação de vontade própria e exercício de liberdade individual.

Ao ingressar no movimento cineclubista, o indivíduo põe-se em contato com outros indivíduos, com os quais passará a conviver, seja em atividades cotidianas, seja em encontros periódicos, seja em grupos de discussão na internet. A ação individual está, assim, inevitavelmente articulada às ações coletivas, e para ser eficaz precisa impregnar-se de espírito militante, amplo senso, caso contrário, desvia-se para a defesa de interesses particulares, o que é oportunismo, ou para de grupos, o que é sectarismo.

A atividade militante, por sua vez, tem características próprias, prima pela ação coletiva planejada, consciente, constante e contínua, persistente e combativa. Essas características põem em cena dois personagens de relevância: a política e a organização. Para se alcançar uma ação coletiva minimamente unitária é necessário que, antes, fruto de debates e acordos, disenções sejam superadas em favor de objetivos comuns, o que pressupõe amadurecimento político do grupo e dos indivíduos que o compõem. O aspecto da ação planejada, por sua vez, expõe o compromisso dos membros do grupo e do próprio coletivo em alcançar os fins estabelecidos da forma mais objetiva possível.

Juntar-se a um coletivo para atingir objetivos planejados é atitude consciente, e implica na aceitação de encargos, que exigirão o concurso da constância, da continuidade, da persistência, da combatividade.

A enorme crise vivida pelo cinema e pelo cineclubismo brasileiros na década de 1990, embora a segunda metade dessa década e o início desta em que nos encontramos apresente resultados positivos, deixou um rasto de devastação que ainda sequer foi devidamente apurado, e o rescaldo dessa década está por ser feito, o que demanda pesquisa.

O militante cineclubista hoje se vê frente a três tarefas igualmente difíceis: a primeira, a de realizar a crítica objetiva do período que passou; a segunda, a de realizar concretamente ações cineclubistas que resultem em rearticulação geral de um movimento que ainda está disperso, falto de acúmulo e sem maior visibilidade; e a terceira, a de definir seus objetivos estratégicos em função de um mundo profundamente alterado política, econômica, cultural e tecnologicamente.

Como se vê, quem nadar no imediatismo pequeno burguês vai naufragar, pois essas três tarefas requerem o concurso de uma outra característica que Lênin apontou como revolucionária no militante: a paciência.

Cineclubismo: caráter democrático

18/12/2005 

Pelas necessidades que visa atender e pelos fins a que se destina, a natureza das ações e práticas cineclubistas investem-se de caráter essencialmente democrático, e isso não apenas em resposta à diversidade de um povo mestiço como o brasileiro, mas também em socorro a demandas históricas da luta dos trabalhadores e de amplos setores da sociedade que almejam um regime política, social e economicamente mais justo e solidário.

Avesso a xenofobias, a intolerâncias raciais, étnicas, políticas, religiosas, a opressão contra grupos minoritários ou segmentos sociais específicos, o movimento cineclubista busca articular-se no interior de comunidades e entre elas de forma a aproximar o diverso e a estabelecer elos entre diferenças que propiciem convívio democrático e profícuo, que se não dispensa o princípio de unidade e luta, enfatiza entretanto a necessidade de vida gregária e da paz.

Dessa atuação intra e intercomunitária resulta a possibilidade de estabelecimento de unidades sociais maiores, mais complexas e mais ricas culturalmente, porque formadas pelo concurso voluntário das particularidades solidárias.

A natureza essencialmente democrática das ações cineclubistas frente à realidade traduz-se nos dias de hoje em práticas coletivas avessas a personalismos, e traduz-se também em ações tendentes à descentralização e à adoção de estruturas organizativas horizontalizadas, modulares, independentes e em rede, tecida voluntariamente pela anuência das unidades integrantes, nunca de cima para baixo, nem de mão única.

Isso equivale a dizer que organogramas verticais empregados em tempos passados – no mais das vezes como decalque ou caricatura de esquemas partidários mal interpretados –, que se esgotaram em função dos novos tempos e de suas próprias limitações, devem ser abandonados, porque servem a propósitos sectários, autoritários... e velhacos. No mundo da cultura, todos os lugares são o centro, e as associações são feitas por afinidade de projetos e não pelo pagamento compulsório de anuidades, ou pela ameaça de sanções ou de exclusão.

Essa natureza democrática de ações e práticas explicita o caráter político do movimento, que se articula e se solidariza com todos os demais movimentos sociais cujos fins se relacionam com a luta pela justiça social e econômica e contra o imperialismo cultural, responsável direto pela inanição do audiovisual nos países em luta por seus direitos de desenvolvimento e responsável também pela atrofia da produção cinematográfica brasileira em particular.

Dizer natureza democrática de ações é dizer pluralidade e diversidade de ideias, de projetos e de formas organizativas. Nos dias atuais, quem pretenda submeter o cineclubismo ou qualquer outro movimento cultural a estruturas rigidamente verticalizadas, mandonistas e fossilizadas comunga de ideologias sectárias e prepotentes, ofende a liberdade de organização e a tradição inovadora que sempre foi um manancial dos movimentos democráticos pelo mundo em todos os tempos, quem assim procede pesa sobre o futuro como um fardo de mau agouro, e o assombra como uma múmia que se recusa a permanecer no sarcófago.

Da natureza democrática de ações decorrem práticas necessariamente agregadoras, criativas, libertárias, em torno de idéias novas e transformadoras, voltadas para a justiça social, que situam o cineclubismo no mesmo leito e no mesmo fluxo dos demais movimentos reivindicativos e políticos orientados para a conquista de melhores condições de vida para os trabalhadores, em que os bens simbólicos se inserem com cada vez maior relevância.

Cineclubismo: movimento de caráter nacional

11/12/2005 

A natureza nacional das práticas e ações do cineclubismo se dá pela contingência de que o movimento tem raízes e se situa no âmbito da nação, realidade inescapável, constituída historicamente e que, por sua vez, é produto de uma articulação complexa entre povo, país e Estado.

A constatação de que o povo brasileiro é híbrido sob todos os aspectos, sejam eles culturais ou biológicos, exige do militante cineclubista não apenas postura despida de preconceitos e de sectarismos de toda ordem, como também atitude de defesa do convívio e intercâmbio das diversidades, o que o situa na posição de intermediário cultural e articulador de segmentos ou comunidades por meio das atividades cineclubistas.

Ser intermediário cultural significa posicionar-se na fronteira, assumindo-se a incumbência de facilitar o comércio simbólico intra e internacional, o que não se faz explorando intolerâncias, estimulando dissenções, elegendo a ênfase na divergência em prejuízo do diálogo, da busca do acordo e da luta por objetivos comuns. Sem dúvida, exercer a função de intermediário cultural não é fácil, pois implica enfatizar, em favor de um projeto nacional e socialmente justo, elos possíveis – e nem sempre evidentes - entre grupos políticos ou de interesses muitas vezes divergentes.

Outra condicionante de práticas e ações desse movimento é a de ele atuar no interior de fronteiras físicas que, no caso brasileiro, compreende um imenso e diversificado patrimônio territorial, material e simbólico espalhado por uma área de magnitude continental. Essa dimensão geográfica põe o movimento frente a enormes dificuldades e, ao mesmo tempo, possibilidades.

As dificuldades dizem respeito não apenas às longas distâncias que separam cineclubes, cineclubistas e atividades cineclubistas uns dos outros, o que implica em ônus adicional para estabelecimento, manutenção e alimentação de um circuito produtor, difusor e exibidor nacional, mas diz respeito igualmente às particularidades regionais de desenvolvimento econômico e de infra-estrutura urbana.

O conhecimento dessas particularidades é essencial para instalação e continuidade de atividades cineclubistas e de audiovisual comunitário, pois se relacionam aos vínculos mais íntimos entre o movimento e a comunidade, sem os quais as iniciativas perdem sua razão de ser. E, contraditoriamente, as imensas distâncias são um infinito manancial de diversidades. Conforme se muda de paisagem, novas realidades inusitadas se oferecem, desafiando a criatividade e instigando a se descobrir os segredos guardados na geografia, no patrimônio histórico e arquitetônico, na memória e no coração das pessoas.

Uma terceira dimensão da natureza nacional das ações cineclubistas é a do Estado, que tem caráter de classe, existe frente a outros Estados e que precisa ser considerado no momento de pesquisa de necessidades, de estabelecimento de objetivos e em todos os momentos de desenvolvimento de práticas e ações.

O Estado brasileiro, como todos sabemos, está subordinado historicamente às elites econômicas, chefiadas nos dias atuais pelo segmento financeiro, cujas relações com os interesses imperialistas, em primeiríssimo lugar o norte-americano, são intrínsecas, interesses que se têm traduzido ultimamente na doutrina neoliberal.

Frente a essa característica do Estado brasileiro, as práticas e ações do movimento cineclubista precisa investir-se de características de luta reivindicatória, pela democratização do audiovisual, e política, pela transformação do Estado, o que envolve mobilização e pressão para quebrar as cadeias que subordinam o Estado brasileiro às elites econômicas e aos interesses imperialistas. E essas cadeias não parasitam apenas os Executivos nos níveis federal, estadual e municipal: parasitam também os poderes legislativos e judiciários nos mesmos – a às vezes em piores – termos.

Militar no cineclubismo no Brasil é, assim, ser três vezes vanguarda: vanguarda na defesa de um povo plural e livre, de um país diverso e soberano, e de um Estado verdadeiramente democrático, porque voltado para a justiça social.

Topas?








Cineclubismo: nacional, democrático, militante

4/12/2005


 

Os objetivos mais estratégicos do cineclubismo estão ligados à democratização do audiovisual em toda sua cadeia, da produção à fruição, e são estabelecidos a partir de uma análise concreta das condições nacionais, estas, por sua vez, submetidas às pressões titânicas do capital multinacional, representado pelo imperialismo norte-americano em primeiríssimo lugar.

Por isso, militar nesse movimento é travar uma luta diligente pela afirmação das identidades e diversidades sociais, locais e regionais, cujas conseqüências são o fortalecimento de valores nacionais, e democráticos, que possibilitam articulações comunitárias internacionais, frente à ação unilateral do imperialismo norte-americano, cujo horizonte é a uniformização cultural do mundo pela lógica do hambúrguer.

Necessidades e objetivos se apresentam inevitavelmente ao cineclubismo, como a qualquer outro movimento, e são elementos de conteúdo sem cuja definição não se vai a lugar nenhum. Porém esses dois elementos não se completam por geração espontânea: é necessário que um outro elemento essencial entre em jogo, e esse elemento é a ação.

Definidos, as necessidades e os objetivos, no caso do cineclubismo apontando no início deste texto, a natureza das ações e práticas adotadas torna-se o principal item para o sucesso ou fracasso, pois são as ações que, progressivamente, concretizam o projeto que dá razão de ser ao movimento.

A essência de um movimento social ou cultural, assim, não se dá apenas pela articulação de necessidades, das quais se parte, e objetivos, os quais se almeja atingir, mas também, e com igual ênfase, pelo caráter das práticas eleitas ou desenvolvidas.

No cineclubismo, como de resto em todos os demais movimentos sociais ou culturais, se as questões de conteúdo não são alheias às de forma, tampouco há acomodação automática entre aqueles e estas. Noutras palavras, se necessidades e objetivos são definidos pelo trabalho consciente, as práticas e ações a eles correspondentes só podem ser produto de um semelhante esforço intelectual produtivo e criativo.

Destaco no desenvolvimento e produção de práticas e ações cineclubistas três dimensões que precisam ser articuladas para que o trabalho cotidiano não perca de vista os objetivos estratégicos do movimento; são eles: sua natureza nacional, democrática e militante.

A natureza nacional das práticas e ações cineclubistas é dada pela contingência de que o cineclubismo se situa no âmbito da nação, realidade inescapável, constituída historicamente, e que, por sua vez, é produto contraditório da interação complexa entre povo, país e Estado.

A natureza democrática das práticas e ações desse movimento relaciona-se às necessidades que visa atender e aos objetivos aos quais se destina, ambos repousados em princípios de justiça social e econômica, de liberdades políticas e de respeito à diversidade cultural e biológica humana.

A natureza militante das práticas e ações do cineclubismo deriva do fato de que esse movimento volta-se para a interferência na realidade, para ação coletiva e transformadora.

Essas questões serão abordadas nos próximos artigos.

Cineclubismo: necessidades e objetivos

27/11/2005

As necessidades simbólicas de uma determinada comunidade estão direta ou indiretamente relacionadas às suas dinâmicas históricas, econômicas e sociais. Acontecimentos que a marcaram, envoltos nas emaranhadas linhas dos acontecimentos passados, características específicas do modo de produção material regional transformadas, reafirmadas ou abolidas pelos novos tempos, composição de classes regional ou perfil sociocultural da população, tomados como exemplos, são campos de particularidades que se articulam para estabelecer identidades comunitárias.

Atuar em uma realidade demarcada por fronteiras físicas ou simbólicas – e quase sempre pelas duas – exige de quem o faz o compromisso de domínio progressivo do conhecimento dessas particularidades, constituintes de identidades locais e sociais.

Numa época em que as identidades globais são estabelecidas em termos de músculos turbinados, bumbuns siliconados e muito hamburguer de minhoca, queijo, molho especial num pão de vento com gergelim, descobrir como as coisas realmente são em suas dinâmicas próprias, torna possível o acúmulo de saber indispensável para uma ação consciente de resistência à destruição de identidades locais e comunitárias já existentes, assim como viabiliza a instituição de novas identidades fundadas em novas lógicas, decisivas para a consecução de um projeto mais humano de sociedade.

Quando um grupo decide se organizar militantemente para atuar em uma comunidade por meio do audiovisual – o nome disso é cineclubismo –, precisa ter em mente que sua ação só tem maiores consequências se elas forem ao encontro dos elementos particulares da realidade que explicitam identidades existentes e insabidas, ou possíveis e ainda não amadurecidas, porém, precisa também estar atendo para o fato de que elementos particulares possíveis de constituírem identidades têm natureza dialética: num de seus polos, residem as necessidades que os instauraram, noutro os objetivos que, atingidos, satisfazem essa necessidades.

Enquanto um conjunto de necessidades não é explicitado, a comunidade sequer se organiza, simplesmente porque não vê qualquer razão para isso. Nesse caso, ela, a comunidade, existe potencial e materialmente, mas, desarticulada pelo desconhecimento de suas demandas, não existe para si. Por essa razão é que o trabalho de conscientização de uma comunidade em relação a seus interesses é essencial para o estabelecimento de identidades locais e sociais efetivas: se desconheço minhas necessidades, não tenho como me identificar com qualquer outro indivíduo ou grupo, cujas necessidades, por extensão, estou também impedido de reconhecer e de legitimar, já que suas razões me são estranhas.

Se a explicitação de necessidades é ponto de partida para associações comunitárias, porque estabelecem as razões iniciais para o ajuntamento das pessoas, a definição de objetivos comuns de curto, médio e longo prazos é que efetiva e consolida o grupo ou a própria comunidade. Aliás, é neste ponto que reside o motivo da quase totalidade dos chamados “rachas” no seio de movimentos sociais ou culturais: as necessidades são, em princípio, comuns, mas os objetivos de setores não se conciliam e a identidade inicial, desfeita, se cinde, no melhor dos casos, ou pulveriza em minúsculas identidades erráticas que, no mais das vezes, caminham para a extinção.

E se a identificação de necessidades reais e profundas é imperiosa, tanto mais é o estabelecimento de objetivos transformadores (objetivos conservadores são possíveis, porém, vocês sabem, sou contra), caso contrário, comunidades e grupos são organizados em torno de necessidades verdadeiras e soluções enganosas, do que resultam muitas caricaturas de movimentos domesticados pelo capital e apelegados por seus líderes espertalhões.

Necessidades reais desveladas, de um lado, e objetivos transformadores estabelecidos, de outro, são polos de elementos potencialmente revolucionários, porque estabelecem as fronteiras da realidade de que se parte e da realidade que se pretende atingir.

A atuação nos movimentos de cineclubismo e de audiovisual comunitário depende essencialmente do reconhecimento desses dois polos dialéticos (necessidades e objetivos) por parte do militante, pois, enquanto que para a imensa maioria dos movimentos sociais as necessidades e os objetivos se dão de forma evidente e muitas vezes dramática, porque materiais e ligados diretamente à sobrevivência – a luta pelo teto, pela terra, pelo salário, pela saúde, pela educação, por exemplo –, para o movimento cineclubista as necessidades e os objetivos se dão sob uma cortina de véus, pois se tratam de elementos simbólicos, culturais, imateriais que, concorrendo com carências humanas mais elementares, precisam de justificativas para lá de convincentes para serem atendidos e alcançados, ainda que em parte e a conta-gotas.

Vamos destruir nossos televisores a marteladas

4/5/2005  

Semana passada, em razão do artigo propositalmente ambíguo que escrevi para esta coluna, recebi uma avalanche de correspondências iradas, furiosas e esbravejantes. A algumas dessas mensagens falta senso de humor, a outras falta senso de realidade. Aos autores das primeiras, sugiro alugar uma fita d’ Os Três Patetas, de O Gordo e o Magro ou do Bob Esponja, que ensinam a gente a não levar a vida à ponta de facas. Aos autores das outras, respondo a seguir.

A segunda metade do século XVIII e todo o XIX europeu apresentaram uma situação sui generis, relacionada ao processo vertiginoso da revolução industrial, que consistiu na dramática falência das velhas estruturas econômicas feudais, atrasadas e rurais em favor do desenvolvimento acelerado das formas burguesas, industriais e urbanas.

O êxodo rural e o amontoamento de populações desprovidas de tudo nos becos de Londres, por exemplo, nas condições mais insalubres, e nas fábricas descritas em obras artísticas de época como verdadeiros infernos sombrios e tormentosos, fermentaram as primeiras revoltas de trabalhadores modernos contra a exploração desmedida desse período – que não poupava sequer crianças em mais tenra idade de jornadas estafantes mesmo para adultos.

As primeiras reações dos trabalhadores a essa situação, tão logo reuniram energias para moverem-se enquanto classe, foram irracionais, contrárias a seus próprios interesses e, no limite, mais reacionárias do que a própria exploração a que estavam submetidos.

Identificando no patrão imediato e nas máquinas a causa de suas penúrias, partiram para a destruição destas e, alguns casos, para o assassínio daqueles. Hauptmann, na Alemanha, tratou da questão em uma de suas peças mais famosas, Os tecelões.

Algumas mensagens que recebi a propósito do artigo sobre os 40 anos da TV Globo expressam indignação não pelo mérito do referido artigo, mas pelo fato de eu assistir televisão.

Ora, se combater a rede Globo pelas virtudes que ela incontestavelmente tem e não por seus defeitos, que são ainda maiores, é uma atitude obscurantista e profundamente reacionária, que dizer então do preconceito contra o próprio aparelho de televisão?

Isso me lembra uma aula que há tempos ministrei a uma turma do Ensino Superior particular de São Paulo, quando a propósito da literatura contemporânea citei casualmente a chegada do homem à lua.

Eis que uma aluna levanta-se, desvia-se da literatura como um foguete, põe-se a questionar o dito fato, a jurar de pés juntos que se tratava de uma farsa montada pela televisão e, em apoio à sua argumentação, dizendo pertencer a uma seita que se orgulhava, inclusive, de proibir os fiéis de assistirem àquela “janela do demônio”.

Na ocasião fiquei aturdido e, ante o irracionalismo manifesto, o melhor a fazer foi tomar o foguete de volta à literatura, excluída agora da alusão astronáutica, e por tabela das deletérias tecnologias audiovisuais. Constato agora que essa seita vem crescendo e já conta com adeptos mesmo entre comunistas, o que é de lamentar e mais ainda de pasmar.

Rede Globo é a melhor e faz 40 anos, mas e daí?

27/04/05 

A programação da Rede Globo destaca esta semana seu 40o. aniversário com uma grande novidade: um festival de auto-referências, o que é enervante, mas é mais do mesmo.

Tem anarcocineclubista que vai ficar fulo da vida com o que vou dizer, mas a verdade é que a Vênus Platinada é o que há de melhor na televisão brasileira, faz tempo. E não adianta ficar fazendo campanha de boicote aos filmes que ela tem produzido, porque também nesse particular tem dado lições de profissionalismo e competência.

Há setores extremamente reacionários, atuantes também no movimento cineclubista, que elegeram a quarentona como o capeta a ser exorcizado da cultura brasileira. Creio que não será possível, pois mesmo em sendo um capeta, já disseminou sua religião tal como no conto de Machado de Assis.

O brasileiro gosta da Rede Globo. Para se ter uma idéia dessa relação entre ela e seu público, basta dizer que se o executivo federal, ou o legislativo ou o judiciário, sumisse dos noticiários por um dia, ninguém sentiria falta e alguns até computariam a ausência como acréscimo de conteúdo, ao passo que se, numa hipótese sinistra, a Globo saísse do ar por um só dia, sabe-se lá quais seriam as imprevisíveis dos populares privados de sua cachaça diária (antes de mais nada, sou a favor da cachaça).

A Globo apoiou até o fim a Ditadura Militar. Enquanto o maior comício em favor das Diretas-Já ocorria, ela transmitia o pronunciamento do impagável Presidente Figueiredo, aquele que preferia o cheiro dos cavalos ao do povo. Em 1989 participou da fraude Collor e transmitiu ao vivo, no dia da eleição, a farsa montada pela Polícia Federal, que, ao prender os seqüestradores de Abílio Diniz, os vestiu com camisetas do PT.

Porém, a Globo nos ofereceu a obra de Janete Clair, Dias Gomes, Vianinha; tá certo que também a Xuxa.

A Globo pôs no ar Saramandaia, Carga Pesada, Sítio do Pica-Pau Amarelo e Big Brother.

A Globo tem 80% de sua programação concentrada em produção própria nacional e é um monopólio que joga xadrez e vale-tudo contra o governo – e ganha – no que tange à democratização dos meios de comunicação.

A Globo tem um núcleo de teledramaturgia e de telejornalismo de qualidade técnica comparável aos níveis internacionais e manipula imagens e informações torcendo-as em favor de neoliberalismo fanático e fundamentalista.

A Globo não é o que os democratas desejamos mas e daí? O Lula não foi à cerimônia de sepultamento de Celso Furtado, mas foi ao velório de Roberto Marinho. E se isso não explica muita coisa, pelo menos ajuda a confundir.

Está pronto para morrer?

20/4/2005

O honorável professor japonês se aposenta, e seus discípulos, eles próprios professores, dão início ao ritual da tradição que envolve o mestre que se retira, o qual consiste na realização anual de uma festa de homenagem ao mestre, e na qual ele tem de beber, de um só gole, uma jarra inteira de cerveja, após o que uma pergunta lhe é dirigida: “Está pronto?”.

Esse “Está pronto?” é uma ironia. A pergunta completa é, na verdade: “Está pronto para morrer?”, à qual o mestre, com toda sinceridade terá de responder, diante da expectativa de todos: sim ou não.

Na data da aposentadoria, o mestre “mata” a jarra e responde“Não!”, entre efusivas saudações do público que, pelo muito paciente e profundamente humano que o mestre foi, o ama.

Seus discípulos, maduros professores, apesar do afastamento do profissional, continuam a visitá-lo em sua casa para compartilhar de sua amizade e de seus ensinamentos. As festas de aposentadoria vão se sucedendo nos anos seguintes, sempre com a alegre negativa. Porém, o tempo vai passando e pesando.

A uma certa altura, o professor adoece e, com a doença, lhe surgem sentimentos de finitude da vida e de profunda saudade da infância, com a qual passa a sonhar. Entre seus alunos dissemina-se então o pressentimento de que o mestre, alquebrado, responda afirmativamente à pergunta ritual na festa que se aproxima.

Numa noite de febre, o mestre aposentado sonha com uma passagem de sua infância: ele e outros meninos brincam de esconde-esconde.

- Madadaiô! Grita um menino, perguntando se ele está pronto.

No sonho, ele sorri, e tenta se esconder.

- Madadaiô! Repete o grito.

Em sonho, ele, menino, continua a sorrir. Demora-se. E responde

- Não, ainda não estou pronto.

Uma festa de homenagem mais se realiza, desta vez em clima angustiado e tristonho, e, todos tensos, congelam-se a espera de que o professor ou morra enquanto bebe a jarra de cerveja, ou, enfim, dê a pior resposta.

O chefe das comemorações, discípulo íntimo, após acompanhar tenso como os demais o mestre a tomar com sofreguidão a jarra de cerveja, pronuncia a fatídica pergunta.

O ancião arregala os olhos enquanto sorve com dificuldade o líquido, saboreia a cerveja como se fosse a última , e responde, com se fosse cair fulminado:

- Não! E ri da peça que acabara de pregar nos alunos, ao que todos acompanham como se tivessem sido pegos pelo pulo do gato.

Esta pequena sinopse do filme Madadaiô, de Akira Kurosawa, o genial cineasta japonês, serve de pretexto para realizarmos uma serena reflexão acerca do papel da militância, nestes tempos em que os jornais não param de noticiar as tragédias decorrentes do terrorismo, da ocupação do Iraque, da situação lamentável que envolve palestinos e Israelenses e da situação de violência e criminalidade no Brasil, circunstâncias em que as muitas mortes físicas e simbólicas parecem sorrir vitória com seus dentes macabros.

Ora, por que participar da vida do país? por que lutar, se tudo pode ser resolvido com um sonoro não às coisas do mundo? Por que valorizar o compromisso, se se pode obter certo tipo de sucesso passando a perna nos companheiros e virando às dificuldades coletivas? Para que disseminar o amor ao trabalho e a prática da solidariedade, se os atalhos da esperteza são muitas vezes mais rendosos?

O filme de Kurusawa responde a essas perguntas com uma simplicidade oriental: porque é preciso responder não à morte e sim à vida.

Podemos fazer uma porção de coisas nocivas para nós e para os que virão depois de nós, entre as quais, desistir – que é uma forma de morrer para alguma causa. Ou podemos encarar as coisas tal como elas são e fazer uma coisa muito mais difícil do que desistir: lutar.

O impasse do (cinema) brasileiro se resolve rezando

13/4/2005  

As produções do cinema brasileiro, que no ano de 2003 superaram os vinte milhões de ingressos e que recuaram em 2004 numa espécie de acomodação de mercado, em 2005 devem estabilizar-se em patamares representativos das atuais perspectivas, que se não chegam a ser desesperadoras, estão longe do potencial de público de nosso mercado interno.

Nosso cinema vive hoje inúmeros conflitos formais e estruturais. Do ponto de vista formal, as pesquisas e experimentações mais radicais se confinam ao universo das produções ditas independentes, muitas das quais relevantes, que todavia se perdem num mar de outras tantas puramente amadorísticas e inexpressivas. As grandes produções esforçam-se por demonstrar o domínio de técnicas e equipamentos, os quais são incorporados às obras e sua realização, no mais das vezes, sem maiores reflexões, o que em vários casos deixa transparecer aquilo que Nelson Rodrigues chamou de “complexo de cachorro vira-latas”, e que pode ser assim traduzido em palavras: vamos mostrar para esses caras que sabemos fazer o que eles fazem (parece a seleção do Parreira). Esses caras, no caso do cinema, são os EUA (no caso da seleção do Parreira é a Inglaterra).

Do ponto de vista estrutural, há um gargalo que impede o filme do realizador brasileiro de encontrar o grande público, que não é aquele que tem ido aos shopping centers estourar seu limite de cartão de crédito ou de cheque especial num consumo desenfreado, mas sim aquele que, hoje, nas periferias das grandes cidades ou nas pequenas e médias vende o almoço para comprar a janta.

Quanto às pesquisas de linguagem, é assunto que fica para a próxima. Quanto ao gargalo de público do nosso cinema, duas coisas necessitariam acontecer antes de quaisquer outras.

A primeira diz respeito à redenção do povo brasileiro por meio de uma política de empregos digna; a segunda, está relacionada à democratização e popularização do cinema, por meio da expansão do circuito exibidor para as periferias das metrópoles e para as pequenas e médias cidades, com preço de ingressos compatíveis com as realidades sociais locais.

Pelo andar da carruagem, que segue impávida para o quarto ano, uma efetiva política de democratização do audiovisual vai se afastando para o horizonte, ou para além dele, de um virtual segundo mandato de Luís Inácio Lula da Silva. Quanto à redenção do povo brasileiro pela implementação de uma política de empregos digna, pela insistência do Presidente em enfatizar sua fé católica, parece que vai ficando ao Deus dará.

Neste ponto saio da economia e do cinema para entrar na história, da MPB: “E se Deus não dá? Como é que vai ficá, ô negá?”

Para não dizerem que fui tomado de súbito pessimismo, quando na realidade fui apenas acudido da lembrança de um antigo samba de Chico Buarque, apresento uma sugestão: já elegemos um presidente para ver se se resolviam nossas aflições, mas a vaga de papa ainda está aberta...

Meus caros leitores, que perdoais as gralhas em que tenho incorrido nestes apressados artigos de quartas-feiras, não percamos a esperança – que é o outro nome da fé. Vamos formar uma corrente de pensamentos positivos que reverta a situação e eleja D. Cláudio Papa.

É uma esperança, e nem é a última, pois... e se houver eleição para Deus? Bem, mas, nesse caso, é preciso considerar que Bush leva ligeira vantagem por estar em campanha há mais tempo.

Desobediência civil

6/4/2005
 

As conquistas feitas pelos trabalhadores ao longo dos séculos têm sido fruto de intensa luta contra os regimes e sistemas de exploração das classes dominantes de cada época, e tanto foram e são muitas e variadas as formas de exploração quanto ainda em maior número e diversificadas são as formas de resistência a ela.

Historiadores já apontaram que a substituição do sistema feudal pelo capitalismo na Idade Média europeia relaciona-se um tanto à constatação, por parte dos senhores da terra, de que o trabalhador livre, assalariado por período, era mais produtivo que o servo, em tempo integral. Se essa produtividade corresponde a uma inovação do sistema de dominação, está também ligada à prática servil que, para burlar a exploração excessiva, realizava mais lentamente as tarefas – algo semelhante a certos movimentos paredistas de trabalhadores modernos que, sem interromper a produção, reduzem-na a limites de baixa ou baixíssima lucratividade.

Em maior ou menor grau, a ação de resistência à exploração sempre tem que enfrentar escolhos legais de época, e uma nova legalidade, um pouco menos ofensiva e penosa aos trabalhadores, sempre é precedida pela desobediência de leis injustas , contra as quais eles justamente se voltam, nos discursos e na prática, sendo que invariavelmente este segundo aspecto, a prática, precede o primeiro, o discurso, e frequentemente com maior impacto e eficácia.

Nos tempos atuais, os trabalhadores não se contentam em questionar apenas o mundo da produção material burguesa, e desejam cada vez mais desfrutar do acesso aos bens culturais. Porém, defrontam-se com impedimentos legais tamanhos e tão sem propósito de um ponto de vista justo e humano que não lhes resta outra alternativa a não ser ignorar esses impedimento e agir conforme as necessidade e as possibilidades. Essa ação, quando politicamente vitoriosa, acaba sendo consagrada em lei, ainda que parcialmente e sob condicionantes.

Tome-se como exemplo o movimento dos sem terra. Suas ações são sempre acompanhadas com apreensão pela burguesia, por seus aliados e publicistas. Porém, quando uma ocupação de terra torna-se vitoriosa, o assentamento dela resultante é assimilado sem maiores sobressaltos e passa a integrar uma nova situação de legalidade, impossível sem a burla da legalidade prévia que cerceava sua instauração.

No mundo da cultura audiovisual, hoje, algo análogo ocorre. Quando um cineclube usa um DVD para exibir um filme, numa associação comunitária ou em um sindicato, está no campo da contravenção ou do crime. Do ponto da legalidade vigente, está no mesmo lodaçal da pirataria, do contrabando e do tráfico de drogas. Até aí, nada de novo no front, pois tratar como crime aquilo que é ação legítima do oprimido contra o opressor é, em política, uma prática mais antiga do que o Império Romano.

Porém, não resta outra saída, aos movimentos culturais de trabalhadores atuais, confrontar na prática esses entraves à sua justa aspiração cultural. A desobediência civil ampla, arrojada e generalizada não só é desejada como é inevitável. De outra forma, o imenso patrimônio cultural cinematográfico hoje disponível pelas novas tecnologias não chegará jamais às populações das periferias das grandes metrópoles ou à cidades menores.

Essa desobediência civil que já está ocorrendo e que oxalá ocorrerá cada vez mais, não sinônimo de pirataria, contrabando ou tráfico mas é tão somente a luta para que o século 20 que já se foi, seja apresentado a uma população muitas vezes condenada por uma elite imoral à condições econômicas, sociais e culturais típicas da Idade Média ou anteriores a ela.

Autoria e mercado


Enquanto entidade simbólica, a autoria é uma organização específica da linguagem, e se concretiza no texto na forma de estilo, produto amadurecido do trabalho artístico. Enquanto ente social e histórico, a autoria é, hoje, uma mercadoria, uma propriedade intelectual privada, seja de um indivíduo, seja de um grupo, cuja exploração é objeto de amplo comércio.

Seja como for, num e noutro caso, a ênfase autoral no indivíduo não é ponto pacífico. Citando exemplos literários, Borges assim se refere ao assunto:

“Para as mentes clássicas, a literatura é o essencial, não os indivíduos. George Moore e James Joyce incorporaram, em suas obras, páginas e sentenças alheias; Oscar Wilde costumava dar seus argumentos de presente para que outros os executassem; ambas as condutas, embora superficialmente opostas, podem evidenciar um mesmo sentido da arte... um sentido ecumênico, impessoal” (J.L. Borges. Obras completas. São Paulo, Globo, 1999. p. 18)

Em torno dessa dupla natureza da autoria, travam-se disputas que, para além dos compêndios acadêmicos, não raro vão dar nos tribunais, uma vez que, se o autor é na obra seu estilo, é no sistema de produção capitalista o verdadeiro produtor da mais-valia da indústria cultural, já que é o responsável por agregar o valor essencial da obra artística.

O regime burguês reconhece a propriedade do autor sobre sua obra, pois são de sua propriedade os meios, processos e técnicas que a originam, coisa que não ocorre com os operários, pois estes, privados dos meios de produção, perdem o direito sobre o produto de seus esforços.

Em razão dessa particularidade do artista, o produto de seu trabalho necessita ser alienado por meio de contratos de cessão de direitos autorais, cuja finalidade é expropriar por um período determinado de tempo ou indefinidamente não a autoria, mas o direito de exploração comercial dela.

Assim, se a muita polêmica que tem havido ultimamente em torno dos direitos autorais, em razão das novas mídias, diz respeito ao vínculo genético entre autor e obra, diz ainda mais em relação à necessidade de a indústria cultural mobilizar meios legais coercitivos para garantir a exploração extrema da comercialização da obra.

Acobertando-se no falso argumento de defesa dos direitos do autor sobre a obra, os apologistas da franca e selvagem vigência das leis de mercado para o mundo da cultura visam preservar e ampliar a exploração de suas minas de ouro, que não são os autores e suas obras, mas os contratos de cessão de direitos, jamais acompanhados de uma transparente contabilidade de comercialização da obra.
A situação figura-se escandalosa, e se ela, pelo lado do autor, profissional submetido às regras do mercado cultural, é periclitante, não fica por menos no que tange ao público.

Em primeiro lugar porque numa lógica de mercado não há público: há consumidor; em segundo, porque o mercado é composto apenas por aqueles em condições de exercer consumo, o que num país como o Brasil dos dias de hoje, em que a economia vai bem mas o povo vai mal, restringe-se a um universo bastante reduzido.

As possibilidades de democratização da vida cultural ensejadas pelas novas tecnologias acrescentam tensão a esse cenário, pois entram em confronto direto com essa lógica de mercado (dita liberal, mas que se faz protegida por lobies políticos, forte legislação, judiciário solícito e polícia nesse caso eficiente), que dirige e circunscreve a circulação de produtos culturais ao universo restrito dos consumidores com real poder de compra.

Não faz muito tempo, um cineclubista mostrou-me uma mensagem intimidadora de uma empresa de filmes que o ameaçava processar caso seu cineclube exibisse o filme por ela distribuído. A cópia era em vídeo e, por isso, só poderia ser exibida em ambientes privados – aqui não está em questão o direito autoral, mas o poder do distribuidor sobre a reprodução da obra.

O argumento de que as pessoas da comunidade eram carentes e não tinham videocassete, e que a exibição não era comercial, mas comunitária, não convenceu o proprietário dos direitos de exibição – ou arrendatário, sabe-se lá –, o que não chegou a ser um transtorno, pois o filme foi exibido assim mesmo, sem autorização, e a atitude arrogante serviu ainda de assunto para o debate posterior à sessão.

Os cineclubes e entidades populares e comunitárias que assim procedem estão a realizar um generoso trabalho de inclusão social por meio da cultura. Não é da natureza dos produtos culturais a condição de mercadoria que os restringe exclusivamente aos indivíduos com poder de aquisição, por isso, aqueles que subvertem essa lógica desumana o fazem em favor da humanidade.

No que tange à incorporação da população à fruição dos produtos culturais, os cineclubes, as entidades de audiovisual comunitário e as associações populares somos também a favor do “privado”.
O jovem das comunidades carentes é privado de condições dignas de moradia, saúde, cultura e educação; o trabalhador aposentado é privado de uma aposentadoria digna, de lazer e assistência médica; o morador da periferia das grandes cidades é privado do emprego, da segurança, de condições de higiene, o índio é privado de sua terra e de sua cultura... Não há ninguém mais privado do povo.

Os direitos autorais, na falsa argumentação liberal, quando são aventados, não o são para garantir o vínculo entre o autor e sua obra, mas para garantir o poder daqueles que lucram exorbitantemente com a alienação desse vínculo – e esse poder é sempre exercido discricionariamente em prejuízo dos que secularmente são excluídos do amplo acesso à cultura: os trabalhadores.

Se um militante cineclubista organiza em um salão de associação comunitária de um bairro carente um cineclube em vídeo com projetor de multimídia, o que propicia uma verdadeira imagem de cinema em tela grande, hoje, está fora da lei. Mas sua situação não é diferente da do sem-teto, nem da dos sem-terra. O que é mais fora da lei: lutar para ter acesso aos bens essenciais à vida ou privar a maioria da população desses bens?

Quando um jovem “baixa” um filme da internet e o assiste privadamente, embora possa ser acusado de pirataria, não causa grandes sustos à lógica liberal, pois sendo sua apropriação individual, está ainda no âmbito da apropriação privada. Porém, que dizer se esse jovem, hipoteticamente morador de uma comunidade carente ou de uma pequena cidade – ambas sabidamente desprovidas de salas de cinema – “baixar” esse mesmo filme e exibi-lo à comunidade por meio de um data show? E se o salão estiver lotado... cem, duzentas pessoas...? E se elas quiserem mais? O equipamento permite... a comunidade quer... Toda uma comunidade é fora da lei?

Os sem-teto e os sem-terra quando realizam suas ocupações são vilipendiados pela imprensa, acossados por pistoleiros, perseguidos por maus juízes e policiais que confraternizam-se após medidas de reintegração de posse com latifundiários em churrascos de bois inteiros, porém, em sua luta estão certos, e o pouco de avanço que tem havido nas questões de habitação e agrária para os trabalhadores brasileiros deve-se a ela.

Os sem-tela, ao derrubarem a cerca do latifúndio do audiovisual não estão inventando nada de novo: é a secular luta dos que precisam contra os que não querem ceder de modo algum. É a luta pela democratização efetiva dos bens culturais audiovisuais, que enfrenta resistência encarniçada dos que põem o lucro à frente do bem-estar humano, mas que anuncia a possibilidade de um novo tempo de acesso justo à cultura e de comunhão não alienada entre artistas e povo, placenta verdadeira de toda verdadeira autoria. 23/3/2005.


JEOSAFÁ é Pesquisador Colaborador do Departamento de História da Universidade de São Paulo, escritor e professor Doutor em Letras pela mesma Universidade e um dos Coordenadores do Cineclube Vladimir Herzog, do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo.  Leciona atualmente para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria);   O jovem Malcolm X A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela editora Mercuryo Jovem. 

Ser (autor) ou não ser (autor). Não é a questão

16/3/2005 

Os cineastas da nouvelle vague ofereceram a criação individualizada como contraponto à linha de produção cinematográfica em série porque entenderam que nesse expediente residiria a força de prevalência do cinema enquanto arte contra o cinema-mercadoria, que sucumbiria.

Implícita nessa formulação está a concepção de que o planejamento da produção e a execução coletiva tendem para a mecanização dos processos e para a mercadoria, enquanto a concentração da produção no indivíduo e a execução guiada por sua intuição assegurariam a criatividade e natureza artística da obra, equação que, no limite, defende a incompatibilidade entre a ação coletiva organizada e a arte, cuja redenção encontrar-se-ia nos mergulhos cada vez mais profundos da subjetividade individual.

Radicalizando essa, Glauber Rocha, em seu Revisão crítica do cinema brasileiro, afirma peremptoriamente:

“Se o cinema comercial é a tradição, o cinema de autor é a revolução. A política de um autor moderno é uma política revolucionária: nos tempos de hoje nem é mesmo necessário adjetivar um ‘autor como revolucionário”, porque a condição de um autor é um substantivo totalizante. Dizer que um autor é reacionário, no cinema, é a mesma coisa que caracterizá-lo como diretor do cinema comercial; é situá-lo como artesão; e ‘não autor’”.

Porém, não é consenso que o ato de planejar e o ato de realizar coletivamente signifique morte da arte, tanto quanto nem todos compartilhem a opinião de que haja uma muralha da china entre arte e artesanato – aliás, com frequência este segundo termo é empregado em menoscabo das manifestações artísticas populares.

A bem da verdade, o isolamento do artista, sua identificação com práticas cada vez mais pessoais e sua busca por formas de expressão profundamente individuais e exclusivas – o que caracterizaria sua assinatura autoral – são fenômenos históricos recentes, intimamente ligados à revolução do Renascimento e intensificados pela arte romântica. A arte anterior a esses períodos convive muito bem com a divisão de tarefas e no mais das vezes só se viabiliza pela ação planeja e executada coletivamente.

A proposta de enfrentamento da crise do cinema, porque é disso de que se trata quando novas relações são propostas ao modelo dominante, assenta-se, assim, ainda nos marcos de um pensamento liberal, por mais que Marx seja citado como para-raios – e quase sempre o é.

Quando Glauber cita concordando: “O ‘autor’ é um termo criado pela nova crítica para situa o cineasta como poeta, o pintor, o ficcionista, autores que possuem determinações específicas” (obra citada anteriormente), tem em mente um tipo específico de autor, poeta, pintor, ficcionista: aquele que resiste à reprodução da obra de arte e à fragmentação desta refugiando-se num estilo radicalmente pessoal, cuja autoria não pode nem deve ser compartilhada e que para não ser objeto de cópia constitui-se tão intrincado que muitas vezes não pode ser sequer lido, quanto mais compreendido.

Hauser tratou do assunto em seu História social da arte e da literatura:

“A crise cinematográfica, que parece estar redundando numa doença crônica, deve-se sobretudo ao fato de que o cinema não está encontrando caminho para o cinema. Habituados [os artistas] a proceder à vontade dentro de suas próprias quatro paredes, são agora solicitados a levar em conta produtores, diretores, roteiristas, ‘cameramen’, diretores de arte e técnicos de todos os gêneros, embora não reconheçam autoridade desse espírito de cooperação ou, na verdade, a própria ideia de colaboração artística. Seus sentimentos revoltam-se contra a ideia de a produção de obras de arte ser entregue a uma organização coletiva, a uma ‘empresa’, e consideram ser um rebaixamento da arte que uma ordem alheia ou, na melhor das hipóteses, uma maioria estranha deva dizer a última palavra em decisões cujos motivos, com frequência, são incapazes de explicar” (São Paulo, Martins Fontes, 1998. p. 978).

A equação revolucionário=autor=diretor teve como produto, não só no Brasil como por toda parte, uma práxis no interior da qual contradições evoluíram para uma situação paradoxal: o impulso revolucionário motor da obra resultou crescentemente em filmes cuja fruição foi se restringido a iniciados cada vez mais especializados, ao ponto de, quanto mais autoral um filme, mais necessário o aporte substancial da fortuna crítica para que o público pudesse penetrar em alguma medida em seus sentidos, mesmos os mais imediatos.

Essa opção não é exatamente entre cinema-arte versus cinema-comercial, mas entre sintaxes mais excludentes – equivocadamente consideradas as únicas capazes de resistir ao cinema-mercadoria em razão do prestígio junto às classes médias letradas – e sintaxes mais abrangentes – equivocadamente identificadas com o cinema comercial, que em razão de sua natureza necessita de mecanismos eficazes de comunicação de massa.

O fenômeno recente da cultura digital só vem intensificar o terremoto que o conceito de autoria vem sofrendo desde o início do século XX – embora Chaplin tenha se esforçado por demonstrar a vitalidade desse conceito em filmes em que só não se fez foi contracenar consigo próprio (mesmo assim porque a tecnologia pouco permitia à época).

E já que cinema nada tem a ver com música, saco aqui uma ilustração por isso impertinente.

Numa entrevista recente, Toquinho lembra de sua parceria com Vinicius, revelando particularidades bem interessantes sobre a complexa – e no caso um tanto hilária – questão da autoria.

Dizia ele que muitas canções da pareceria foram compostas nas mesas de bares, compartilhadas por ele e pelo Poetinha e, não raras vezes, por amizades estabelecidas ao acaso e ao sabor do uísque. Nessas ocasiões, Vinicius, sem maiores rodeios se dirigia a um dos colegas de copo e dizia algo mais ou menos assim: “Olha, você vai ser meu parceirinho nessa música, fala alguma palavra”.

A palavra com frequência nem era aproveitada, mas nada o demovia de renunciar à parceria, quando menos pela boa intenção do interlocutor embasbacado com a possibilidade de constar como co-autor em uma canção “de Vinicius”.

Assim se explica, segundo Toquinho, o porquê de, em certas letras, algumas bem curtinhas, como no caso de Gente Humilde, constarem tantos autores.

A digressão impertinente serve para ilustrar as diferentes posturas possíveis frente à questão da autoria, tornada dogma pelos cineastas da nouvelle vague, mas tratada com espirituosidade pelo Poetinha.

E não deixa de ser significativo que os primeiros enfatizassem sua primazia e reivindicassem sua propriedade exclusiva (e privada, ao fim das contas), enquanto o segundo zombasse dela, compartilhando o seu melhor nas mesas dos bares cariocas com alguns, para nós, verdadeiros anônimos – que poderiam ser nós mesmos – tivéssemos a sorte.

Cinema, literatura e a produção da autoria

9/3/2005

Semana passada, em razão dos muitos compromissos que a sobrevivência impõe, estive ausente deste espaço, ao qual retorno agora dando continuidade ao assunto de que tratara inicialmente no artigo anterior.

Os cineastas da nouvelle vague e sua política dos autores, objetivaram impor uma derrota definitiva ao cinema comercial, que no pós-guerra encontrou em Hollywood uma fonte aparentemente inesgotável e uma matriz de reprodução estética aparentemente infalível.

Consideravam eles que a ênfase do processo criativo no autor constituiria um xeque-mate para o sistema de produção em série consagrado pelo cinema norte-americano mais característico, e que o conceito de autoria fora bem sedimentado pela tradição literária, o que permitiria sua extrapolação para as artes cinematográficas sem maiores constrangimentos, o que convém examinar.

Em época de domínio burguês, não há mais lugar para sábios estoicos mantidos por esmolas ou prebendas, nem para artistas cujas obras não tenham valor de troca, nem tampouco para filósofos cujos ofícios não agreguem valor à mercadoria ou não contribuam de algum modo para a manutenção do status quo. O que há é uma especialização aguda de papéis sociais e uma busca de mensuração objetiva do trabalho intelectual – em que artistas e técnicos do saber podem ser incluídos – condicionadas pelas leis de mercado às quais tanto ofícios quanto produtos estão subordinados.

Da situação particular do escritor em relação à organização da produção burguesa deriva sua própria natureza, que é a um tempo social, vale dizer histórica, e estética, vale dizer simbólica.

De um ponto de vista histórico, o escritor, tal como o conhecemos contemporaneamente, é um dos muitos produto da revolução industrial, que é a face político-econômica da revolução burguesa, pois foi ela que, radicalizando as contradições entre trabalho manual e trabalho intelectual, destinou uns, situados no âmago da produção material e na base da pirâmide social, para realizar a mais-valia nas fábricas, e outros, posicionados no centro da produção simbólica e nas camada intermediárias da sociedade, para dar corpo à superestrutura ideológica do sistema capitalista a partir do Estado ou de seus mecanismos auxiliares.

Em essência, o trabalho dos operários e o dos escritores não se difere. Formam, inclusive, uma mesma unidade. Porém, o primeiro está privado da concepção abstrata do que produz, tanto quanto o segundo está privado do poder de concretizar materialmente aquilo que concebe.

No capitalismo as formas de produção material e intelectual diferem-se, pois uns são destinados exclusivamente à transformação material do mundo, os proletários, e outros à produção imaterial, os intelectuais.

Porém, os proletários não são detentores dos meios de produção (as máquinas, as fábricas e toda sua infraestrutura), enquanto os escritores, mesmo quando oriundo das camadas proletárias, detém esses meios, que, no seu caso, são simbólicos (o saber, os métodos, as técnicas), o que o situa, muitas vezes a fórceps, no âmbito das chamadas, muito incorretamente, profissões liberais, tão necessárias para a regularização e normalização dos processos produtivos capitalistas quanto para o controle e estabilidade social do sistema burguês.

Assim, enquanto operários produzem coletivamente, uns em face dos outros, sem posse ou domínio quer de processos, quer de materiais, quer de meios – e de maneira fragmentada –; o escritor produz individual e isoladamente, de posse e senhor de técnicas, métodos e matéria de seu mister – e de maneira integral.

A sofisticação e o aprofundamento da especialização do sistema produtivo burguês, no entanto, leva a que, continuamente, essas profissões voltadas à produção simbólica de proletarizem, seja pelo achatamento dos ganhos, cada vez mais próximos do valor de remuneração das forças produtivas, seja pela utilitarização do trabalho científico, muitos vezes tornado apêndice do desenvolvimento de produtos, ou seja ainda pela imposição crescente à produção simbólica de formas importadas aos métodos característicos da organização da produção fabril – a indústria norte-americana do best seller é exemplo eloquente de método fordista aplicado à produção literária, e não figura nenhuma novidade.

Se o escritor individualmente resiste a essa “industrialização” de seu ofício, enquanto categoria social deseja as vantagens dessa situação bastante mais propícia à profissionalização efetiva; e vivendo essa angústia ontológica , ao mesmo tempo que sofistica suas técnicas objetivando constituir obras cada vez mais pessoais para fugir à estandartização, aspira alcançar o reconhecimento do grande público do qual se divorciou muitas vezes pelo hermetismo e profundo individualismo de suas mesmas técnicas.

Os cineastas da nouvelle vague, ao buscarem na direção cinematográfica, entendida como ato fundador do processo criativo, o duplo do escritor literário, importaram para essa arte caçula de todas as outras as contradições inerentes a ele.

O autor literário decide absolutamente tudo em sua criação, pois tudo é símbolo, das letras com que grafa suas invenções aos universos que inventa. Porém, por mais individualista que seja um diretor cinematográfico, a natureza de sua ação nunca será isolada, individual, ou exclusiva, pois o ponto em que se encontra no processo criativo cinematográfico é o da articulação dos elementos materiais e simbólicos de que resultará o filme. E se ele articula esses elementos, salvo casos excepcionais em que assume outras funções – e ao assumi-las está se deslocando da sua própria – ele não inventa o ator que concretiza a personagem, nem a luz ou o cenário, portadores de sentidos, e no mais das vezes sequer o roteiro.

Talvez o prestígio alcançado pela literatura nos séculos XIX e XX tenha pesado excessivamente sobre a mais nova das artes, e por isso se tenha buscado no cinema o elemento que nele correspondesse ao escritor ou poeta.

O novo romance francês, de Michel Butor, por exemplo, parceiro da nouvelle vague nessa aventura arriscada, se é uma busca de novos caminhos autorais, é também um salto sem rede que pode dar fora da literatura, como aponta Julio Cortázar em seu Valise de Cronópio.

Uma das conseqüências dessa extrapolação é que a crise da autoria vivida pela literatura já em meados do século passado se transferirá quase que sem tradução para as artes cinematográficas, com as desvantagens enfrentadas pela literatura, mas sem seus proveitos, pois se a crise que nela é genuína, no cinema trata-se de um mal entendido, como o próprio Godard reconheceu recentemente:

“Apoiávamos mais facilmente um mal filme de autor que um bom filme de alguém que não o era. E depois o conceito se inverteu, se transformou em um culto ao autor, e não ao seu trabalho. Então, todo mundo se tornou autor, e hoje quase que o cenarista pede para ser reconhecido como autor dos pregos que colocou no cenário. O ter não quer dizer mais nada (...). Acredito que quando lançamos a política dos autores, nos enganamos ao privilegiar a palavra autor, enquanto que na verdade é a palavra político que era preciso ressaltar.” (Folha de São Paulo, Caderno Mais, 14/12/2004, p.4).

A ênfase num aspecto como alternativa para a coisificação do cinema foi uma crença sincera, todavia apoiada numa base falsa, porque puramente formal. E se antes da política dos autores Hollywood produzia filmes em série, hoje produz em série e abundância também autores, roteiristas e outros "istas" que surgirão para sofisticar essa máquina até que ela, ou o sistema que dela necessita, ou ambos, se esgote por completo.