O honorável professor japonês se aposenta, e seus discípulos, eles próprios professores, dão início ao ritual da tradição que envolve o mestre que se retira, o qual consiste na realização anual de uma festa de homenagem ao mestre, e na qual ele tem de beber, de um só gole, uma jarra inteira de cerveja, após o que uma pergunta lhe é dirigida: “Está pronto?”.
Esse “Está pronto?” é uma ironia. A pergunta completa é, na verdade: “Está pronto para morrer?”, à qual o mestre, com toda sinceridade terá de responder, diante da expectativa de todos: sim ou não.
Na data da aposentadoria, o mestre “mata” a jarra e responde“Não!”, entre efusivas saudações do público que, pelo muito paciente e profundamente humano que o mestre foi, o ama.
Seus discípulos, maduros professores, apesar do afastamento do profissional, continuam a visitá-lo em sua casa para compartilhar de sua amizade e de seus ensinamentos. As festas de aposentadoria vão se sucedendo nos anos seguintes, sempre com a alegre negativa. Porém, o tempo vai passando e pesando.
A uma certa altura, o professor adoece e, com a doença, lhe surgem sentimentos de finitude da vida e de profunda saudade da infância, com a qual passa a sonhar. Entre seus alunos dissemina-se então o pressentimento de que o mestre, alquebrado, responda afirmativamente à pergunta ritual na festa que se aproxima.
Numa noite de febre, o mestre aposentado sonha com uma passagem de sua infância: ele e outros meninos brincam de esconde-esconde.
- Madadaiô! Grita um menino, perguntando se ele está pronto.
No sonho, ele sorri, e tenta se esconder.
- Madadaiô! Repete o grito.
Em sonho, ele, menino, continua a sorrir. Demora-se. E responde
- Não, ainda não estou pronto.
Uma festa de homenagem mais se realiza, desta vez em clima angustiado e tristonho, e, todos tensos, congelam-se a espera de que o professor ou morra enquanto bebe a jarra de cerveja, ou, enfim, dê a pior resposta.
O chefe das comemorações, discípulo íntimo, após acompanhar tenso como os demais o mestre a tomar com sofreguidão a jarra de cerveja, pronuncia a fatídica pergunta.
O ancião arregala os olhos enquanto sorve com dificuldade o líquido, saboreia a cerveja como se fosse a última , e responde, com se fosse cair fulminado:
- Não! E ri da peça que acabara de pregar nos alunos, ao que todos acompanham como se tivessem sido pegos pelo pulo do gato.
Esta pequena sinopse do filme Madadaiô, de Akira Kurosawa, o genial cineasta japonês, serve de pretexto para realizarmos uma serena reflexão acerca do papel da militância, nestes tempos em que os jornais não param de noticiar as tragédias decorrentes do terrorismo, da ocupação do Iraque, da situação lamentável que envolve palestinos e Israelenses e da situação de violência e criminalidade no Brasil, circunstâncias em que as muitas mortes físicas e simbólicas parecem sorrir vitória com seus dentes macabros.
Ora, por que participar da vida do país? por que lutar, se tudo pode ser resolvido com um sonoro não às coisas do mundo? Por que valorizar o compromisso, se se pode obter certo tipo de sucesso passando a perna nos companheiros e virando às dificuldades coletivas? Para que disseminar o amor ao trabalho e a prática da solidariedade, se os atalhos da esperteza são muitas vezes mais rendosos?
O filme de Kurusawa responde a essas perguntas com uma simplicidade oriental: porque é preciso responder não à morte e sim à vida.
Podemos fazer uma porção de coisas nocivas para nós e para os que virão depois de nós, entre as quais, desistir – que é uma forma de morrer para alguma causa. Ou podemos encarar as coisas tal como elas são e fazer uma coisa muito mais difícil do que desistir: lutar.
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