sábado, 11 de junho de 2011

Autoria e mercado


Enquanto entidade simbólica, a autoria é uma organização específica da linguagem, e se concretiza no texto na forma de estilo, produto amadurecido do trabalho artístico. Enquanto ente social e histórico, a autoria é, hoje, uma mercadoria, uma propriedade intelectual privada, seja de um indivíduo, seja de um grupo, cuja exploração é objeto de amplo comércio.

Seja como for, num e noutro caso, a ênfase autoral no indivíduo não é ponto pacífico. Citando exemplos literários, Borges assim se refere ao assunto:

“Para as mentes clássicas, a literatura é o essencial, não os indivíduos. George Moore e James Joyce incorporaram, em suas obras, páginas e sentenças alheias; Oscar Wilde costumava dar seus argumentos de presente para que outros os executassem; ambas as condutas, embora superficialmente opostas, podem evidenciar um mesmo sentido da arte... um sentido ecumênico, impessoal” (J.L. Borges. Obras completas. São Paulo, Globo, 1999. p. 18)

Em torno dessa dupla natureza da autoria, travam-se disputas que, para além dos compêndios acadêmicos, não raro vão dar nos tribunais, uma vez que, se o autor é na obra seu estilo, é no sistema de produção capitalista o verdadeiro produtor da mais-valia da indústria cultural, já que é o responsável por agregar o valor essencial da obra artística.

O regime burguês reconhece a propriedade do autor sobre sua obra, pois são de sua propriedade os meios, processos e técnicas que a originam, coisa que não ocorre com os operários, pois estes, privados dos meios de produção, perdem o direito sobre o produto de seus esforços.

Em razão dessa particularidade do artista, o produto de seu trabalho necessita ser alienado por meio de contratos de cessão de direitos autorais, cuja finalidade é expropriar por um período determinado de tempo ou indefinidamente não a autoria, mas o direito de exploração comercial dela.

Assim, se a muita polêmica que tem havido ultimamente em torno dos direitos autorais, em razão das novas mídias, diz respeito ao vínculo genético entre autor e obra, diz ainda mais em relação à necessidade de a indústria cultural mobilizar meios legais coercitivos para garantir a exploração extrema da comercialização da obra.

Acobertando-se no falso argumento de defesa dos direitos do autor sobre a obra, os apologistas da franca e selvagem vigência das leis de mercado para o mundo da cultura visam preservar e ampliar a exploração de suas minas de ouro, que não são os autores e suas obras, mas os contratos de cessão de direitos, jamais acompanhados de uma transparente contabilidade de comercialização da obra.
A situação figura-se escandalosa, e se ela, pelo lado do autor, profissional submetido às regras do mercado cultural, é periclitante, não fica por menos no que tange ao público.

Em primeiro lugar porque numa lógica de mercado não há público: há consumidor; em segundo, porque o mercado é composto apenas por aqueles em condições de exercer consumo, o que num país como o Brasil dos dias de hoje, em que a economia vai bem mas o povo vai mal, restringe-se a um universo bastante reduzido.

As possibilidades de democratização da vida cultural ensejadas pelas novas tecnologias acrescentam tensão a esse cenário, pois entram em confronto direto com essa lógica de mercado (dita liberal, mas que se faz protegida por lobies políticos, forte legislação, judiciário solícito e polícia nesse caso eficiente), que dirige e circunscreve a circulação de produtos culturais ao universo restrito dos consumidores com real poder de compra.

Não faz muito tempo, um cineclubista mostrou-me uma mensagem intimidadora de uma empresa de filmes que o ameaçava processar caso seu cineclube exibisse o filme por ela distribuído. A cópia era em vídeo e, por isso, só poderia ser exibida em ambientes privados – aqui não está em questão o direito autoral, mas o poder do distribuidor sobre a reprodução da obra.

O argumento de que as pessoas da comunidade eram carentes e não tinham videocassete, e que a exibição não era comercial, mas comunitária, não convenceu o proprietário dos direitos de exibição – ou arrendatário, sabe-se lá –, o que não chegou a ser um transtorno, pois o filme foi exibido assim mesmo, sem autorização, e a atitude arrogante serviu ainda de assunto para o debate posterior à sessão.

Os cineclubes e entidades populares e comunitárias que assim procedem estão a realizar um generoso trabalho de inclusão social por meio da cultura. Não é da natureza dos produtos culturais a condição de mercadoria que os restringe exclusivamente aos indivíduos com poder de aquisição, por isso, aqueles que subvertem essa lógica desumana o fazem em favor da humanidade.

No que tange à incorporação da população à fruição dos produtos culturais, os cineclubes, as entidades de audiovisual comunitário e as associações populares somos também a favor do “privado”.
O jovem das comunidades carentes é privado de condições dignas de moradia, saúde, cultura e educação; o trabalhador aposentado é privado de uma aposentadoria digna, de lazer e assistência médica; o morador da periferia das grandes cidades é privado do emprego, da segurança, de condições de higiene, o índio é privado de sua terra e de sua cultura... Não há ninguém mais privado do povo.

Os direitos autorais, na falsa argumentação liberal, quando são aventados, não o são para garantir o vínculo entre o autor e sua obra, mas para garantir o poder daqueles que lucram exorbitantemente com a alienação desse vínculo – e esse poder é sempre exercido discricionariamente em prejuízo dos que secularmente são excluídos do amplo acesso à cultura: os trabalhadores.

Se um militante cineclubista organiza em um salão de associação comunitária de um bairro carente um cineclube em vídeo com projetor de multimídia, o que propicia uma verdadeira imagem de cinema em tela grande, hoje, está fora da lei. Mas sua situação não é diferente da do sem-teto, nem da dos sem-terra. O que é mais fora da lei: lutar para ter acesso aos bens essenciais à vida ou privar a maioria da população desses bens?

Quando um jovem “baixa” um filme da internet e o assiste privadamente, embora possa ser acusado de pirataria, não causa grandes sustos à lógica liberal, pois sendo sua apropriação individual, está ainda no âmbito da apropriação privada. Porém, que dizer se esse jovem, hipoteticamente morador de uma comunidade carente ou de uma pequena cidade – ambas sabidamente desprovidas de salas de cinema – “baixar” esse mesmo filme e exibi-lo à comunidade por meio de um data show? E se o salão estiver lotado... cem, duzentas pessoas...? E se elas quiserem mais? O equipamento permite... a comunidade quer... Toda uma comunidade é fora da lei?

Os sem-teto e os sem-terra quando realizam suas ocupações são vilipendiados pela imprensa, acossados por pistoleiros, perseguidos por maus juízes e policiais que confraternizam-se após medidas de reintegração de posse com latifundiários em churrascos de bois inteiros, porém, em sua luta estão certos, e o pouco de avanço que tem havido nas questões de habitação e agrária para os trabalhadores brasileiros deve-se a ela.

Os sem-tela, ao derrubarem a cerca do latifúndio do audiovisual não estão inventando nada de novo: é a secular luta dos que precisam contra os que não querem ceder de modo algum. É a luta pela democratização efetiva dos bens culturais audiovisuais, que enfrenta resistência encarniçada dos que põem o lucro à frente do bem-estar humano, mas que anuncia a possibilidade de um novo tempo de acesso justo à cultura e de comunhão não alienada entre artistas e povo, placenta verdadeira de toda verdadeira autoria. 23/3/2005.


JEOSAFÁ é Pesquisador Colaborador do Departamento de História da Universidade de São Paulo, escritor e professor Doutor em Letras pela mesma Universidade e um dos Coordenadores do Cineclube Vladimir Herzog, do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo.  Leciona atualmente para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria);   O jovem Malcolm X A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela editora Mercuryo Jovem. 

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