sábado, 11 de junho de 2011

Cineclubismo: quando imagem não é coisa

2/6/2004

O final da década de 1990 e o início desta década trouxeram para a cena cultual brasileira duas excelentes constatações: a retomada com fôlego do cinema brasileiro e a rearticulação do movimento cineclubista, que tanto contribuiu para a democratização do país e que tanto sofreu os efeitos do cataclismo neoliberal das eras Collor e FHC. E tanto no caso da primeira constatação — em que a energia de realizadores não para de produzir boas notícias —, como na da segunda — em que cineclubistas mobilizam-se por toda parte para encontros, inaugurações de novos cineclubes etc. —, o que fica nos olhos de quem observa é a certeza de que há consistência e perspectiva de sobra nesses dois acontecimentos.

Porém, se há uma certa unanimidade em torno de nosso cinema hoje, o mesmo não se pode dizer do movimento cineclubista, muito em razão de toda uma geração ter crescido sem ter ouvido com maior frequência palavras como "cineclube", "cineclubismo" e outras que tais.

Outro dia, uma correspondência, endereçada a mim por meio deste Portal Vermelho, me indagava se aquilo que o missivista fazia era cineclubismo. E o que era que ele fazia? Explico.

O único cinema da cidade fechara fazia tempo, então, a comunidade se organizou, muitos voluntários surgiram e o cinema foi reaberto com uma programação voltada para o interesse da comunidade, a partir de uma gestão também coletiva. Bom, ele não sabia, mas o que ele e a comunidade estão fazendo é cineclubismo da melhor qualidade.

Nos idos dos anos 1960 e 1970 as atividades cineclubistas estavam invariavelmente ligadas à resistência ao regime militar. Exibir filmes de denúncia num centro acadêmico estudantil ou em um sindicato era um ato de coragem, e não foram poucos os que foram fichados pelos órgãos de repressão em razão disso. A distribuidora nacional do movimento foi várias vezes invadida pela Polícia Federal e muitos de seus filmes foram sumariamente sequestrados.

A ditadura se foi, não deixa saudades. O cineclubismo ficou, mesmo tendo enfrentado o período aziago dos dois Fernandos. As atividades cineclubistas se diversificaram, abrangendo, além das tradicionais exibições com debates, a produção, a educação, e não me admira se houver por aí uma banda de rock cineclubista ou um grupo de forró, com sanfona triângulo e zabumba, cineclubando com estilo e bossa.
O problema é que muitos nem sabem que isso é cineclubismo.

Enquanto o cinema comercial estabelece uma relação entre coisas: a coisa filme é exibida e a coisa consumidor come pipoca enquanto engole pelos olhos imagens sobre as quais não tem o menor domínio ou consciência, o cineclubismo é uma atividade que busca descoisificar um e outro: o filme deixa de ser coisa para se tornar obra a ser fruída, analisada, interpretada, debatida, estudada; e o consumidor dá lugar ao público, gente de carne, osso, pensamento e emoção, que interage com a obra, e a aceita, rejeita, abandona ou incorpora criticamente.

Numa palavra, se três pessoas estão frente à tevê passivas, conformadas com a relação autoritária da mídia sedenta de vender de vitamina C a apartamentos de alto padrão, o que temos é a coisa falando às coisas. Porém, se diante da mesma tevê tivermos três pessoas assistindo, comparando o que veem com o que ocorre na realidade, analisando as intenções "da coisa que não para de querer vender coisas", e conversando sobre o quanto é bom ser gente, não coisa, temos aí um cineclube - talvez composto por mãe, pai e um filho que não para de perguntar "por quê?".

Precisa de CNPJ para ser cineclube? Não. Precisa pedir autorização para o Ministério da Justiça? Não. Precisa estar cadastrado no MinC? Não. Precisa de aparelhagem do último tipo? Não. Precisa manjar de cinema? Não. Basta ser gente, querer compreender esses mecanismos espetaculares que produzem imagens para o domínio ou para a liberdade.

As correntes físicas da escravidão, ao menos oficialmente, foram rompidas, no Brasil, em fins do século XIX. Sucede que outro tipo de escravidão estabeleceu-se com não menos violência: a escravidão simbólica. Num mundo tomado pelo audiovisual, desconhecer seus segredos significa ser escravo de alma, significa ser sempre enganado, significa estar sempre à mercê dos mesmos que no passado empregavam outro tipo de mecanismo de controle social para escravizar o corpo: o pelourinho.

Cineclubar é, pois, isso. Simples como respirar. Mas é um respirar coletivo.

Guardadas as devidas proporções, e observada uma certa licença poética, o cineclubismo está para o latifúndio do audiovisual assim como o MST está para outros latifúndios menos simbólicos.

 



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