sábado, 11 de junho de 2011

Cineclube: uma idéia na cabeça e uma chama bem forte no coração

21/7/2004  

Faz um tempinho, ocorreu um fato inusitado. Depois de um jogo de bola, fomos a uma pizzaria tomar uma cerveja e jogar conversa fora, coisa maravilhosa de se fazer.

Compúnhamos um grupo quarentão, em boa forma, de amigos desde a época de colégio. Versávamos sobre coisas daquela época, quando jogávamos mais e bebíamos menos.

A eleição do grêmio livre rendeu umas lágrimas e um bocado de gargalhada. O grêmio era proibido pela ditadura, mas aos 15 anos ninguém deu pelota para o detalhe. A diretoria proibiu, mas realizamos assim mesmo, com urna volante passando nas salas de aula, bate-boca com professor reacionário e aluno puxa-saco e tudo a que tem direito uma boa campanha eleitoral estudantil.

Bom, para encurtar, chegou a PM, invadiu a escola e tivemos de pular os muros dos fundos do colégio, que dava para um baita matagal da periferia da zona norte de São Paulo, e desabalar feito de fantasma com as urnas enroscando entre as pernas enquanto corríamos e nos borrávamos de medo.

Acabamos conquistando depois um centro cívico com o auxílio e proteção de uma professora espetacular, Christina Thomé, de história, que, soube mais tarde, era comunista de carteirinha — recentemente fui à sua defesa de tese em história, sobre a resistência dos estudantes da USP à implementação do acordo MEC-USAID, durante a "redentora".

Bem, mas o causo não é esse. Ou antes, não é apenas esse.

Em meio à discussão sobre detalhes desse tempo que se afasta, que a uns pareciam uma coisa e a outros outra, em razão mesmo desse afastar-se que turva tudo numa neblina diáfana, foi acolhido à mesa um companheiro que se encontrava noutra ponta do estabelecimento comercial intitulado pizzaria, mas que, a rigor, era mesmo um típico boteco infecto-contagioso em que profissionais amadores do esporte bretão, após um racha (racha de "rachar canelas"), debatem esse assunto de fundamental importância para todo brasileiro, salvo os que se exilaram no Canadá em virtude de não gostarem de samba, de cinema, nem de Deus, nem do comunismo nem em mim. Ah, e de futebol.

Esse amigo que se achegou para dividir a cerveja, e a conta, que ninguém tem larjam sobrando, foi logo me confundindo com meu irmão. Não, eu não era o Valdir... O Valdir era o outro, o mais novo, o então goleiro de primeira, agora biólogo, que está no Rio de Janeiro há anos, uns quinze pelo menos.

Ah! Eu era o do Cineclube Chaplin, né? Isso, era isso mesmo.

Esse amigo recompôs histórias desse cineclube de que eu mesmo me esquecera. O cineclube acontecia aos sábados e domingos no mesmo colégio em que realizáramos anos antes a heróica eleição estudantil.

O local cinematográfico era numa sala quadrada, novinha em folha, com carteiras de aula, parede branca servindo de tela, cortinas feitas pela esposa do caseiro para ajudar no escurecimento da sala e um excelente e pesado projetor de 16mm, com fitas alugadas à Embra e à Dina.

Lembrou-se de muitas exibições, tais como a do Segredo da Múmia, que deu um tremendo bafafá em razão das cenas de mulher pelada, e de Eles não usam black tie, quando as sessões superlotaram das duas da tarde do sábado à meia noite do domingo, ininterruptamente. No sábado, aliás, não realizássemos a sessão da meia noite, que terminou quase duas da manhã, a multidão do lado de fora, irada, nos quebraria a pau e mediante o uso de outros instrumentos cortantes e contundentes. Vários dos que se encontravam à mesa dobrando-se em gargalhadas ajudaram a conter a fúria do público amante da sétima arte. E o que dizer então dos que tentavam, passando a mão à frente da projeção, pegar a imagem sem perceber a sombra projetada na parede! Ou dos que faziam fila para agradecer a primeira ida ao cinema — invariavelmente homens e mulheres com mais de 60 anos!

E não é que os olhos desse amigo marearam?

O mais novo à mesa, emocionado ele foi contando a importância para ele, e para os então meninos como ele, daquele cineclube. Lembrou do grafite do cineclube que ele ajudara a pintar, pela madrugada, na parede de uma relojoaria do bairro, aventura que resultou em o relojoeiro com uma pistola calibre 38 a obrigar todos a apagarem aquilo que para ele era um vandalismo e para os rapazes um ato de amor pela cultura cinematográfica do bairro.

Lembrou-se ainda das panfletagens às sextas-feiras nos pontos de ônibus superlotados da estação Carandiru do Metrô, de onde partiam os ônibus para o bairro, e lamentou a pasmaceira do bairro, que pareceu parar no tempo após o fechamento do cineclube, e perguntou por que acabou e por que não voltava o cineclube.

Por que acabou, expliquei: uma diretora reacionária achou péssimo que houvesse mais gente na escola aos fins de semana do que em dias letivos. Agora, por que o cineclube Chaplin não voltava à ativa, não soube explicar, não.

Outra noite sonhei com esses amigos, os quais não tenho visto ultimamente em virtude de o primeiro semestre deste 2004 ter sido particularmente extenuante. Acho que esse sonho foi um aviso para que eu os procure. Para o futebol e para o cineclube.

Aliás, permitam-me terminar este artigo assim, abruptamente, pois vou ligar agora mesmo a eles para convencê-los a reativar o impagável Cineclube Chaplin. Não há explicação para ele ainda estar suspenso assim, na memória, já que ninguém dentre os que estavam à mesa desistiu do Brasil, todos gostamos de samba, de cinema, a maioria, de Deus, alguns do comunismo e todos de futebol.

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