sábado, 11 de junho de 2011

Cinema e realidade

1/9/2004 

Outro dia, após a exibição de Cidade de Deus em um cineclube de bairro popular, uma pergunta inesperada pegou no contrapé os organizadores do cineclube. A pergunta era simples e direta, e partia de um adolescente visivelmente sensibilizado pelo que assistira:

- Vai acontecer com meu pai o que aconteceu no filme?

Sem dúvida que o pouco mais que menino em questão fez a pergunta com o coração na boca. E foi com o coração na boca que os participantes da discussão que sucedeu o filme foram dando suas respostas em palavras mais que comedidas.

Após o susto, algumas impressões começaram a flutuar por sobre as cabeças dos presentes. A primeira delas era a de que os olhos com que esse pouco mais que menino assistiu ao filme não eram olhos amortecidos, eram olhos diferentes.

O filme a que ele assistiu não era o mesmo a que os demais tinham com ele assistido. Tocado por uma realidade impiedosa, seus olhos enxergaram para além das imagens da ficção o seu próprio drama. E sua pergunta era mais do que um questionamento entre a fantasia e a realidade: era um pedido de ajuda, ante um filme que lhe pareceu antecipar seu próprio futuro.

A pergunta é dramática, e pinta o cenário dos cineclubes que atuam em áreas de risco social.

Conversando mais tarde com os organizadores do cineclube chegamos a uma evidência da qual não se poderia fugir: se desejamos atuar junto às comunidades carentes, teremos de enfrentar seus dramas, junto com elas. Se o cineclube despertou na comunidade ou em parte dela uma consciência a partir da qual a própria realidade dessa comunidade pode ser transformada, então o cineclube terá de se haver com os questionamentos que despertou. E não tenhamos dúvidas: áreas de risco social são áreas de risco social mesmo. Atuar nelas envolve riscos reais que, mal dimensionados, podem ter resultados até mesmo funestos.

Deixa eu contar um caso, que esse risco fica mais claro.

Coisa de dez anos atrás, num bairro que nasceu de uma ocupação de terras na zona norte de São Paulo, surgiu um problema bem grave: a sede da associação dos moradores, após a conquista dos títulos de propriedade dos terrenos, ficou meio desativada. A sede era grande e nela se realizaram muitas das assembleias que tornaram possível a realização o sonho da casa própria dos então sem-teto.
O resultado da inatividade da sede foi que os traficantes de drogas a ocuparam.

Numa reunião, de que não me lembro, conheci um dos antigos líderes da ocupação - o movimento cineclubista iniciava seu período de hibernação, mas ainda tentávamos tocar cineclubes cada vez com maiores dificuldades. Então o antigo líder pediu melhores explicações sobre esse negócio de cineclube, não sem reclamar a falta de espaços de lazer e cultura no bairro que resultou da ocupação. Falou-me da sede e da lástima de a terem perdido para o pior dos mundos.

Para encurtar a história, traçamos um plano para retomar a sede. Esse plano envolvia certa "licença" para empregá-la em atividades culturais, entre as quais, exibição filmes em 16mm emprestados de amigos, com projetor transportado em ônibus. As sessões de cineclube foram enchendo, enchendo, até não caberem mais na sede e terem de ser realizadas na praça em frente, com lençol estendido entre os postes. Durou quase dois anos, mas a comunidade retomou o que era seu e que havia sido privatizado.

Infelizmente, conseguir filmes foi ficando cada vez mais difícil e como diria o Drummond:



"e tudo acabou,
e tudo fugiu
e tudo mofou
e agora, José?"



E agora é que estamos diante dos mesmos problemas, mas maiores possibilidades de ação, que em vídeo e com projetor multimídia não corre o risco de interromper-se, a não ser pelo problema de se poder ou não exibir vídeo em ambiente não doméstico.

Voltando ao assunto sem ter saído dele, a organização de cineclubes em áreas carentes implica em intervenção direta na realidade dessa comunidade, realidade cheia de conflitos, um mais dramático que o outro. Por mais inocente que seja a ação de um cineclube em uma comunidade assim, seu impacto é sempre muito forte, porque sua importância é muito grande. Ao final do filme, um olhar para o outro e perguntar: e agora, o que fazemos? é uma rotina. E se é que cineclube é intervenção sociocultural, aqui isso é mais evidente por que a ação é reclamada quase que instantaneamente.

A pergunta feita por aquele pouco mais que menino após a exibição de Cidade de Deus ainda está boiando no ar, porque a realidade de que partiu ainda está lá, a espera de transformação. Este fim de semana tem filme outra vez no mesmo cineclube, no domingo, que é quando a falta de espaços de lazer e cultura bate mais fundo, e àquela pergunta dramática outras se somarão, e o cineclube terá de participar das mobilizações para que elas sejam respondidas na prática, sob pena de ter seu sentido essencial esvaziado. Participar dessas mobilizações não desvirtua a natureza do cineclube, antes disso, coroa-a.

Diante da importância dessas perguntas e de seus desdobramentos, vamos ser realistas, chega a ser frescura perguntar se pode ou não exibir um vídeo ou DVD em outros espaços que não sejam os de salas burguesas e satisfeitas.

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