Os cineastas da nouvelle vague ofereceram a criação individualizada como contraponto à linha de produção cinematográfica em série porque entenderam que nesse expediente residiria a força de prevalência do cinema enquanto arte contra o cinema-mercadoria, que sucumbiria.
Implícita nessa formulação está a concepção de que o planejamento da produção e a execução coletiva tendem para a mecanização dos processos e para a mercadoria, enquanto a concentração da produção no indivíduo e a execução guiada por sua intuição assegurariam a criatividade e natureza artística da obra, equação que, no limite, defende a incompatibilidade entre a ação coletiva organizada e a arte, cuja redenção encontrar-se-ia nos mergulhos cada vez mais profundos da subjetividade individual.
Radicalizando essa, Glauber Rocha, em seu Revisão crítica do cinema brasileiro, afirma peremptoriamente:
“Se o cinema comercial é a tradição, o cinema de autor é a revolução. A política de um autor moderno é uma política revolucionária: nos tempos de hoje nem é mesmo necessário adjetivar um ‘autor como revolucionário”, porque a condição de um autor é um substantivo totalizante. Dizer que um autor é reacionário, no cinema, é a mesma coisa que caracterizá-lo como diretor do cinema comercial; é situá-lo como artesão; e ‘não autor’”.
Porém, não é consenso que o ato de planejar e o ato de realizar coletivamente signifique morte da arte, tanto quanto nem todos compartilhem a opinião de que haja uma muralha da china entre arte e artesanato – aliás, com frequência este segundo termo é empregado em menoscabo das manifestações artísticas populares.
A bem da verdade, o isolamento do artista, sua identificação com práticas cada vez mais pessoais e sua busca por formas de expressão profundamente individuais e exclusivas – o que caracterizaria sua assinatura autoral – são fenômenos históricos recentes, intimamente ligados à revolução do Renascimento e intensificados pela arte romântica. A arte anterior a esses períodos convive muito bem com a divisão de tarefas e no mais das vezes só se viabiliza pela ação planeja e executada coletivamente.
A proposta de enfrentamento da crise do cinema, porque é disso de que se trata quando novas relações são propostas ao modelo dominante, assenta-se, assim, ainda nos marcos de um pensamento liberal, por mais que Marx seja citado como para-raios – e quase sempre o é.
Quando Glauber cita concordando: “O ‘autor’ é um termo criado pela nova crítica para situa o cineasta como poeta, o pintor, o ficcionista, autores que possuem determinações específicas” (obra citada anteriormente), tem em mente um tipo específico de autor, poeta, pintor, ficcionista: aquele que resiste à reprodução da obra de arte e à fragmentação desta refugiando-se num estilo radicalmente pessoal, cuja autoria não pode nem deve ser compartilhada e que para não ser objeto de cópia constitui-se tão intrincado que muitas vezes não pode ser sequer lido, quanto mais compreendido.
Hauser tratou do assunto em seu História social da arte e da literatura:
“A crise cinematográfica, que parece estar redundando numa doença crônica, deve-se sobretudo ao fato de que o cinema não está encontrando caminho para o cinema. Habituados [os artistas] a proceder à vontade dentro de suas próprias quatro paredes, são agora solicitados a levar em conta produtores, diretores, roteiristas, ‘cameramen’, diretores de arte e técnicos de todos os gêneros, embora não reconheçam autoridade desse espírito de cooperação ou, na verdade, a própria ideia de colaboração artística. Seus sentimentos revoltam-se contra a ideia de a produção de obras de arte ser entregue a uma organização coletiva, a uma ‘empresa’, e consideram ser um rebaixamento da arte que uma ordem alheia ou, na melhor das hipóteses, uma maioria estranha deva dizer a última palavra em decisões cujos motivos, com frequência, são incapazes de explicar” (São Paulo, Martins Fontes, 1998. p. 978).
A equação revolucionário=autor=diretor teve como produto, não só no Brasil como por toda parte, uma práxis no interior da qual contradições evoluíram para uma situação paradoxal: o impulso revolucionário motor da obra resultou crescentemente em filmes cuja fruição foi se restringido a iniciados cada vez mais especializados, ao ponto de, quanto mais autoral um filme, mais necessário o aporte substancial da fortuna crítica para que o público pudesse penetrar em alguma medida em seus sentidos, mesmos os mais imediatos.
Essa opção não é exatamente entre cinema-arte versus cinema-comercial, mas entre sintaxes mais excludentes – equivocadamente consideradas as únicas capazes de resistir ao cinema-mercadoria em razão do prestígio junto às classes médias letradas – e sintaxes mais abrangentes – equivocadamente identificadas com o cinema comercial, que em razão de sua natureza necessita de mecanismos eficazes de comunicação de massa.
O fenômeno recente da cultura digital só vem intensificar o terremoto que o conceito de autoria vem sofrendo desde o início do século XX – embora Chaplin tenha se esforçado por demonstrar a vitalidade desse conceito em filmes em que só não se fez foi contracenar consigo próprio (mesmo assim porque a tecnologia pouco permitia à época).
E já que cinema nada tem a ver com música, saco aqui uma ilustração por isso impertinente.
Numa entrevista recente, Toquinho lembra de sua parceria com Vinicius, revelando particularidades bem interessantes sobre a complexa – e no caso um tanto hilária – questão da autoria.
Dizia ele que muitas canções da pareceria foram compostas nas mesas de bares, compartilhadas por ele e pelo Poetinha e, não raras vezes, por amizades estabelecidas ao acaso e ao sabor do uísque. Nessas ocasiões, Vinicius, sem maiores rodeios se dirigia a um dos colegas de copo e dizia algo mais ou menos assim: “Olha, você vai ser meu parceirinho nessa música, fala alguma palavra”.
A palavra com frequência nem era aproveitada, mas nada o demovia de renunciar à parceria, quando menos pela boa intenção do interlocutor embasbacado com a possibilidade de constar como co-autor em uma canção “de Vinicius”.
Assim se explica, segundo Toquinho, o porquê de, em certas letras, algumas bem curtinhas, como no caso de Gente Humilde, constarem tantos autores.
A digressão impertinente serve para ilustrar as diferentes posturas possíveis frente à questão da autoria, tornada dogma pelos cineastas da nouvelle vague, mas tratada com espirituosidade pelo Poetinha.
E não deixa de ser significativo que os primeiros enfatizassem sua primazia e reivindicassem sua propriedade exclusiva (e privada, ao fim das contas), enquanto o segundo zombasse dela, compartilhando o seu melhor nas mesas dos bares cariocas com alguns, para nós, verdadeiros anônimos – que poderiam ser nós mesmos – tivéssemos a sorte.
Implícita nessa formulação está a concepção de que o planejamento da produção e a execução coletiva tendem para a mecanização dos processos e para a mercadoria, enquanto a concentração da produção no indivíduo e a execução guiada por sua intuição assegurariam a criatividade e natureza artística da obra, equação que, no limite, defende a incompatibilidade entre a ação coletiva organizada e a arte, cuja redenção encontrar-se-ia nos mergulhos cada vez mais profundos da subjetividade individual.
Radicalizando essa, Glauber Rocha, em seu Revisão crítica do cinema brasileiro, afirma peremptoriamente:
“Se o cinema comercial é a tradição, o cinema de autor é a revolução. A política de um autor moderno é uma política revolucionária: nos tempos de hoje nem é mesmo necessário adjetivar um ‘autor como revolucionário”, porque a condição de um autor é um substantivo totalizante. Dizer que um autor é reacionário, no cinema, é a mesma coisa que caracterizá-lo como diretor do cinema comercial; é situá-lo como artesão; e ‘não autor’”.
Porém, não é consenso que o ato de planejar e o ato de realizar coletivamente signifique morte da arte, tanto quanto nem todos compartilhem a opinião de que haja uma muralha da china entre arte e artesanato – aliás, com frequência este segundo termo é empregado em menoscabo das manifestações artísticas populares.
A bem da verdade, o isolamento do artista, sua identificação com práticas cada vez mais pessoais e sua busca por formas de expressão profundamente individuais e exclusivas – o que caracterizaria sua assinatura autoral – são fenômenos históricos recentes, intimamente ligados à revolução do Renascimento e intensificados pela arte romântica. A arte anterior a esses períodos convive muito bem com a divisão de tarefas e no mais das vezes só se viabiliza pela ação planeja e executada coletivamente.
A proposta de enfrentamento da crise do cinema, porque é disso de que se trata quando novas relações são propostas ao modelo dominante, assenta-se, assim, ainda nos marcos de um pensamento liberal, por mais que Marx seja citado como para-raios – e quase sempre o é.
Quando Glauber cita concordando: “O ‘autor’ é um termo criado pela nova crítica para situa o cineasta como poeta, o pintor, o ficcionista, autores que possuem determinações específicas” (obra citada anteriormente), tem em mente um tipo específico de autor, poeta, pintor, ficcionista: aquele que resiste à reprodução da obra de arte e à fragmentação desta refugiando-se num estilo radicalmente pessoal, cuja autoria não pode nem deve ser compartilhada e que para não ser objeto de cópia constitui-se tão intrincado que muitas vezes não pode ser sequer lido, quanto mais compreendido.
Hauser tratou do assunto em seu História social da arte e da literatura:
“A crise cinematográfica, que parece estar redundando numa doença crônica, deve-se sobretudo ao fato de que o cinema não está encontrando caminho para o cinema. Habituados [os artistas] a proceder à vontade dentro de suas próprias quatro paredes, são agora solicitados a levar em conta produtores, diretores, roteiristas, ‘cameramen’, diretores de arte e técnicos de todos os gêneros, embora não reconheçam autoridade desse espírito de cooperação ou, na verdade, a própria ideia de colaboração artística. Seus sentimentos revoltam-se contra a ideia de a produção de obras de arte ser entregue a uma organização coletiva, a uma ‘empresa’, e consideram ser um rebaixamento da arte que uma ordem alheia ou, na melhor das hipóteses, uma maioria estranha deva dizer a última palavra em decisões cujos motivos, com frequência, são incapazes de explicar” (São Paulo, Martins Fontes, 1998. p. 978).
A equação revolucionário=autor=diretor teve como produto, não só no Brasil como por toda parte, uma práxis no interior da qual contradições evoluíram para uma situação paradoxal: o impulso revolucionário motor da obra resultou crescentemente em filmes cuja fruição foi se restringido a iniciados cada vez mais especializados, ao ponto de, quanto mais autoral um filme, mais necessário o aporte substancial da fortuna crítica para que o público pudesse penetrar em alguma medida em seus sentidos, mesmos os mais imediatos.
Essa opção não é exatamente entre cinema-arte versus cinema-comercial, mas entre sintaxes mais excludentes – equivocadamente consideradas as únicas capazes de resistir ao cinema-mercadoria em razão do prestígio junto às classes médias letradas – e sintaxes mais abrangentes – equivocadamente identificadas com o cinema comercial, que em razão de sua natureza necessita de mecanismos eficazes de comunicação de massa.
O fenômeno recente da cultura digital só vem intensificar o terremoto que o conceito de autoria vem sofrendo desde o início do século XX – embora Chaplin tenha se esforçado por demonstrar a vitalidade desse conceito em filmes em que só não se fez foi contracenar consigo próprio (mesmo assim porque a tecnologia pouco permitia à época).
E já que cinema nada tem a ver com música, saco aqui uma ilustração por isso impertinente.
Numa entrevista recente, Toquinho lembra de sua parceria com Vinicius, revelando particularidades bem interessantes sobre a complexa – e no caso um tanto hilária – questão da autoria.
Dizia ele que muitas canções da pareceria foram compostas nas mesas de bares, compartilhadas por ele e pelo Poetinha e, não raras vezes, por amizades estabelecidas ao acaso e ao sabor do uísque. Nessas ocasiões, Vinicius, sem maiores rodeios se dirigia a um dos colegas de copo e dizia algo mais ou menos assim: “Olha, você vai ser meu parceirinho nessa música, fala alguma palavra”.
A palavra com frequência nem era aproveitada, mas nada o demovia de renunciar à parceria, quando menos pela boa intenção do interlocutor embasbacado com a possibilidade de constar como co-autor em uma canção “de Vinicius”.
Assim se explica, segundo Toquinho, o porquê de, em certas letras, algumas bem curtinhas, como no caso de Gente Humilde, constarem tantos autores.
A digressão impertinente serve para ilustrar as diferentes posturas possíveis frente à questão da autoria, tornada dogma pelos cineastas da nouvelle vague, mas tratada com espirituosidade pelo Poetinha.
E não deixa de ser significativo que os primeiros enfatizassem sua primazia e reivindicassem sua propriedade exclusiva (e privada, ao fim das contas), enquanto o segundo zombasse dela, compartilhando o seu melhor nas mesas dos bares cariocas com alguns, para nós, verdadeiros anônimos – que poderiam ser nós mesmos – tivéssemos a sorte.
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