sábado, 11 de junho de 2011

Cineclubismo: necessidades e objetivos

27/11/2005

As necessidades simbólicas de uma determinada comunidade estão direta ou indiretamente relacionadas às suas dinâmicas históricas, econômicas e sociais. Acontecimentos que a marcaram, envoltos nas emaranhadas linhas dos acontecimentos passados, características específicas do modo de produção material regional transformadas, reafirmadas ou abolidas pelos novos tempos, composição de classes regional ou perfil sociocultural da população, tomados como exemplos, são campos de particularidades que se articulam para estabelecer identidades comunitárias.

Atuar em uma realidade demarcada por fronteiras físicas ou simbólicas – e quase sempre pelas duas – exige de quem o faz o compromisso de domínio progressivo do conhecimento dessas particularidades, constituintes de identidades locais e sociais.

Numa época em que as identidades globais são estabelecidas em termos de músculos turbinados, bumbuns siliconados e muito hamburguer de minhoca, queijo, molho especial num pão de vento com gergelim, descobrir como as coisas realmente são em suas dinâmicas próprias, torna possível o acúmulo de saber indispensável para uma ação consciente de resistência à destruição de identidades locais e comunitárias já existentes, assim como viabiliza a instituição de novas identidades fundadas em novas lógicas, decisivas para a consecução de um projeto mais humano de sociedade.

Quando um grupo decide se organizar militantemente para atuar em uma comunidade por meio do audiovisual – o nome disso é cineclubismo –, precisa ter em mente que sua ação só tem maiores consequências se elas forem ao encontro dos elementos particulares da realidade que explicitam identidades existentes e insabidas, ou possíveis e ainda não amadurecidas, porém, precisa também estar atendo para o fato de que elementos particulares possíveis de constituírem identidades têm natureza dialética: num de seus polos, residem as necessidades que os instauraram, noutro os objetivos que, atingidos, satisfazem essa necessidades.

Enquanto um conjunto de necessidades não é explicitado, a comunidade sequer se organiza, simplesmente porque não vê qualquer razão para isso. Nesse caso, ela, a comunidade, existe potencial e materialmente, mas, desarticulada pelo desconhecimento de suas demandas, não existe para si. Por essa razão é que o trabalho de conscientização de uma comunidade em relação a seus interesses é essencial para o estabelecimento de identidades locais e sociais efetivas: se desconheço minhas necessidades, não tenho como me identificar com qualquer outro indivíduo ou grupo, cujas necessidades, por extensão, estou também impedido de reconhecer e de legitimar, já que suas razões me são estranhas.

Se a explicitação de necessidades é ponto de partida para associações comunitárias, porque estabelecem as razões iniciais para o ajuntamento das pessoas, a definição de objetivos comuns de curto, médio e longo prazos é que efetiva e consolida o grupo ou a própria comunidade. Aliás, é neste ponto que reside o motivo da quase totalidade dos chamados “rachas” no seio de movimentos sociais ou culturais: as necessidades são, em princípio, comuns, mas os objetivos de setores não se conciliam e a identidade inicial, desfeita, se cinde, no melhor dos casos, ou pulveriza em minúsculas identidades erráticas que, no mais das vezes, caminham para a extinção.

E se a identificação de necessidades reais e profundas é imperiosa, tanto mais é o estabelecimento de objetivos transformadores (objetivos conservadores são possíveis, porém, vocês sabem, sou contra), caso contrário, comunidades e grupos são organizados em torno de necessidades verdadeiras e soluções enganosas, do que resultam muitas caricaturas de movimentos domesticados pelo capital e apelegados por seus líderes espertalhões.

Necessidades reais desveladas, de um lado, e objetivos transformadores estabelecidos, de outro, são polos de elementos potencialmente revolucionários, porque estabelecem as fronteiras da realidade de que se parte e da realidade que se pretende atingir.

A atuação nos movimentos de cineclubismo e de audiovisual comunitário depende essencialmente do reconhecimento desses dois polos dialéticos (necessidades e objetivos) por parte do militante, pois, enquanto que para a imensa maioria dos movimentos sociais as necessidades e os objetivos se dão de forma evidente e muitas vezes dramática, porque materiais e ligados diretamente à sobrevivência – a luta pelo teto, pela terra, pelo salário, pela saúde, pela educação, por exemplo –, para o movimento cineclubista as necessidades e os objetivos se dão sob uma cortina de véus, pois se tratam de elementos simbólicos, culturais, imateriais que, concorrendo com carências humanas mais elementares, precisam de justificativas para lá de convincentes para serem atendidos e alcançados, ainda que em parte e a conta-gotas.

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