Jorge Luís Borges, em um de seus célebres ensaios sobre literatura afirma que, ante os exércitos vencedores, nem mesmo os mortos estão a salvo. E se expressão por ele empregada é irônica, isso se deve menos ao seu gênio de mestre literário, que é de infinita grandeza, e mais ao seu agudo senso de realidade, que não é menor.
Borges, que visitou amplamente a literatura e a história mundial, constata serenamente que a vitória dos invasores significa não apenas consternação no presente da cultura dominada, mas, e mais dramaticamente, uma redefinição do futuro e uma reinvenção do passado dessa mesma cultura: não apenas sobre os existentes pesará o ônus da derrota, mas também os mortos e os que ainda nem nasceram entrarão na contabilidade de indenizações que os vencidos sempre têm de pagar aos vencedores.
A equação proposta por Borges parece complexa, no entanto resume uma evidência facilmente constatável: ou um grupo pugna por inventar e produzir sua identidade integral, em que passado, presente e futuro são elementos indissociáveis; ou, ao abrir mão dessa prerrogativa, cede a que outros o façam.
A reflexão sobre o passado é, nessa equação singela, não um exercício de estéril reprodução desinteressada, mas uma produção simbólica ligada a objetivos ideológicos e políticos bem definidos. Noutras palavras, os exércitos dos mortos sempre são mobilizados pelos vivos para as mais diversas causas, e sempre estão ou de um lado ou de outro, a depender de quem os mobiliza. Mortos sim, mas apáticos nunca.
Com frequência, surgem aqueles falando em nome do passado, brandindo depoimentos fidedignos acerca dos quais nenhuma dúvida restaria. Para essa perspectiva, o passado seria uma verdade definitiva, mobilizada com cândidos propósitos. Porém, nem a mais ingênua das almas acreditaria numa versão tão mal concertada.
O passado é sempre mobilizado para exercer alguma função em projetos político-ideológicos, e esses projetos podem estar ligados à transformação social ou à manutenção do status quo. A verdade sobre o passado não é a Verdade, mas uma verdade inventada a partir de um ponto de vista localizado num tempo, num espaço, numa estrutura social e com objetivos tácitos.
Na produção do passado, a partir da invenção da fotografia, do cinema e da televisão, por sua natureza industrial e de massa, a imagem visual associada ao som assumiu o primeiro plano, e sua difusão hoje pela internet e pelos os sistemas integrados globais intensificou essa situação, cujos impactos ainda não podem ser medidos com exatidão - e talvez nunca o sejam.
Mas o que se pode afirmar sem receio de erro é que não se pode abrir mão de produzir o passado por meio das tecnologias audiovisuais, principalmente quando se tem um projeto de transformação social oposto a um status quo injusto.
As forças sociais e correntes políticas conservadoras, acomodadas a um Estado que as beneficia, jamais projetarão luzes sobre aspectos do passado que evidenciem seu caráter reacionário e violento. Essas forças e correntes fabricam imagens do passado consoante com suas necessidades de autopreservação no presente e de perpetuação no futuro. O que criam e difundem sobre o passado não é o passado, mas o que no passado lhes interessa ver, fazer ver e propagar, e o que no passado lhes permite inventar sua própria imagem e a de outros para justificar sua permanência eterna.
Por sua vez, as forças sociais revolucionárias e suas expressões políticas e culturais buscam no passado não o elixir da eterna juventude, mas a razão de seus insucessos. Para essas forças, o estudo do passado não se presta à sua perpetuação, mas à superação no presente e no futuro do que nele, passado, é manifestação de estruturas sociais injustas e de ideologia conservadora, que se permanece, o faz sempre como assombração e obstáculo ao progresso social.
O que é isso, senão uma guerra pela conquista do passado?
Este momento por que passa o Brasil tem sido pródigo em exemplos dessa disputa. As mesmas forças reacionárias que apoiaram a ditadura militar reapresentam-se como paladinas da liberdade de imprensa e acusam um governo popular, composto em seu principal núcleo por forças democráticas, de assacar contra a democracia. Trata-se naturalmente de uma reinvenção do passado e de uma livre versão do presente, que seriam inócuas, não fossem apresentadas como verdades isentas de interesses e não tivessem como objetivo perpetuar no futuro as mesmas iniquidades que afirmam condenar.
A transformação do Brasil em uma nação mais justa passa, pela democratização da produção material, mas, em igual proporção, pela democratização da produção simbólica, quem tem no audiovisual um setor estratégico.
Agora, quem não sabe que esse setor está completamente ocupado por forças que nada têm de democráticas? Quem acredita que se poderá inventar e fazer florescer uma nova imagem de Brasil em que passado, presente e futuro sejam apropriados pela ótica da transformação social sem que se tome domínio e posse desse setor estratégico?
Os ataques raivosos que o governo Lula e o MinC têm sofrido são frutos de uma mistificação por sob a qual está um medo bastante justo: o medo de que o Brasil se aproprie do que é seu, o que seria uma novidade na economia do audiovisual, tão habituada a ser tratada como território ocupado sem maiores resistências.
Os grandes órgãos de imprensa têm brandido sua versão do passado por todos os meios que pode, e procuram associar a essa versão caricata aquilo que no governo Lula é contrário a seus interesses, tidos como modernos. Ora, o que mais arcaico de que o latifúndio? E o que são os monopólios da imprensa e do audiovisual senão latifúndios simbólicos? O que mais avesso à democracia de que o controle familiar de verdadeiros impérios das telecomunicações? O que mais antidemocrático de que submeter o público a uma programação de TV sobre a qual ele não detém o menor controle sob nenhum aspecto?
Nos últimos dias o que se tem visto e ouvido é um setor conservador da sociedade a mobilizar o passado em seu favor, contabilizando em seu saldo inclusive aquilo combateu. O que resulta desse esforço grotesco é um filme de horror, com o qual esse setor conta para neutralizar a vontade de mudanças mais profundas que se vai espalhando pelo país.
Essa parte da sociedade sabe que o medo é inimigo das transformações, e sabe que não lhe resta, por ora, outra coisa a não ser a disseminação do medo. E como as razões de medo real minguam, o negócio é inventar uma maldição, estilo múmias ambulantes sob cujas ataduras as carnes ainda não apodreceram completamente.
Não parece que o eleitor vá sair totalmente impressionado desse filme de horror para a cabine de votação sem antes refletir sobre seus próprios interesses, mesmo porque, para o eleitor, o que está em questão é o futuro, ainda que o mais próximo, não o passado, ainda que com feições de assombração.
Porém, não tenhamos dúvidas, quanto mais próximos estivermos das urnas, mais almas penadas, vampiros e entidades cavernosas tomarão lugar nos meios de comunicação de massa.
São os cabos eleitorais com que PSDB e PFL contam.
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