Nos cursos de literatura que leciono para o nível superior, emprego o audiovisual não apenas como item acessório, ilustrativo, mas como parte do próprio programa. Seja documentário, seja ficção, o filme mostra-se generoso nas lições que pode dar, nas reflexões que suscita, e na ampliação de visão que propicia.
Um filme que me acompanha sempre nas aulas, nos seminários ou encontros que organizo é "Páginas da Revolução", de Roberto Faenza, cujo título original é "Sostiene Pereira", obra adaptada do romance homônimo do escritor italiano Antonio Tabucchi.
Estrelado por Marcello Mastroianni, Stefano Dionisi, Daniel Auteuil e Joaquim de Almeida, o filme, de 98 minutos, é uma obra de arte surpreendente em todos os sentidos, seja pelo conteúdo humano que resulta da densa narrativa, seja pelas muitas arapucas armadas pelo diretor para que o público caia e se delicie.
Uma dessas arapucas, à qual poucos prestam a atenção, e que é cheia de significados e sentidos, é a presença de uma voz narrativa que o tempo todo relata para o público os fatos que envolvem o, a princípio, obeso, alheio e taciturno senhor Pereira, interpretado espetacularmente por Marcello Mastroianni, em um de seus últimos papéis (deve-se dizer sobre ele na Itália algo semelhante do que se diz de Gardel, na Argentina: morreu, mas está cada vez melhor).
O senhor Pereira é um jornalista português que, em meio à ditadura de Salazar em Portugal e à ascensão do nazismo na Europa, durante a guerra civil espanhola, mostra-se indiferente a tudo a seu redor, mergulhado em reminiscências de uma viuvez sem filhos e em traduções literárias para o caderno cultural de um jornal conservador e colaboracionista, que ele julga "libero e independente".
Essa voz que vai apresentando as alterações físicas e psicológicas pelas quais passa o sr. Pereira é irônica, bem humorada, analítica, interpretativa e solidária — mas crítica, quer para com a personagem principal, quer para com o público.
Porém, o que observo em todos os debates que se seguem à exibição do filme é que poucos, não raro ninguém, prestam atenção a essa voz.
Insisto durante o debate: "A quem pertence essa voz tão decisiva para o entendimento da essência dessa narrativa?" A essa pergunta pesa gelada no ar e a ela, invariavelmente, segue-se um silêncio constrangido.
Já ocorreu de selecionar trechos do filme em que a voz se mostra mais evidente, e ainda assim o público não a associou a nada que tenha visto durante a exibição.
Por que isso ocorre?
Ocorre principalmente pelo desconhecimento da gramática fílmica (cinematográfica, se preferirem).
Alfabetizado pelos e habituado aos filmes de perseguição de automóveis que inescapavelmente trombam e capotam, e aos melodramas decalcados da pior tradição romântica do século XIX, o público tem dificuldade de observar e compreender algo além do enredo de peripécias, das cenas sentimentais ou dos closes de erotismo e malícia previsíveis.
Habituado a um verdadeiro massacre de obviedades e lugares comuns de gosto para lá de duvidoso, o público, ainda que de boa vontade, procura em toda parte o herói aburguesado, o par romântico, a imagem maliciosa, mesmo onde não há: um distante semelhança já serve.
E quando não encontra nem sombra de algo parecido com esses aspectos, despreza o que não compreende e desgosta de verdadeiras obras primas do cinema.
Assim, o desconhecimento da gramática audiovisual condena o público à mesmice por um lado e à exclusão por outro. O fácil e banal é preferido porque os significados de obras mais sofisticadas para ele se fecham como ostras, como cofres, como enigmas indecifráveis.
Quando se fala de exclusão, vem sempre à mente a privação dos meios materiais, e, sem dúvidas, esse tipo de exclusão tem de ter fim, e é por isso que o eleitor brasileiro nas últimas eleições presidenciais optou por um projeto de país mais solidário e inclusivo.
Porém, não basta ter TV, vídeo, DVD ou dinheiro para ir ao cinema: é preciso crescentemente dominar esse idioma essencial ao nosso contemporâneo e mais que nunca mundo audiovisual.
Numa palavra, a indigência simbólica só pode ser combatida com formação e educação do público, e luta para que o público seja retirado dos baixos dos viadutos simbólicos passa por domínio e posse de meios materiais, mas também por domínio e posse meios espirituais.
E quem pode fazer isso em massa?
Puxo a brasa para minha sardinha: o movimento cineclubista, que ressurge no Brasil com força e que pode contribuir em muito para que o público, de posse crescente dos meios materiais (o cineclube) e do idioma audiovisual (ensinado e aprendido coletiva e reciprocamente no interior dos cineclubes e em massa), exija sua parte nesse bolo que não parou nunca de crescer e de que tão pouco tem desfrutado.
Nos debates que envolvem a exibição de "Páginas da Revolução", costumo, se ninguém descobre, revelar de quem é a voz desprezada. Mas, aqui, não vou fazer isso, não.
Convido todos os que ainda não assistiram ao filme a fazê-lo, e a refletir sobre essa voz que fala aos ouvidos o tempo todo, que é evidente e que escapa, por parecer dissociada de toda e qualquer imagem.
Esse é um tipo de filme para o qual é um crime usar a palavra "reprise", pois a cada exibição, algo novo se descobre, tantas são as arapucas armadas pelo diretor. Aliás, por que é que o filme se inicia com o sr. Pereira, bigode a lhe envelhecer a face, macambúzio, obeso, recurvo, apoiado em bengala, sempre vestido num paletó de defunto, e termina - o cartaz do filme é emblemático - com ele caminhando ereto, firme, determinado, com uma mochila de adolescente ao ombro, um paletó jogado às costas, sem bigode e sem bengala?
Vamos nos incluir nessa conversa?
Em tempo: saúde ao MST pelos seus vinte anos de luta pela inclusão de cada vez mais brasileiros no campo simbólico da cidadania e no campo real desta terra que precisa ser de todos, e que um dia vai ser.
É o que digo: terra aos sem terra e tela aos sem tela.
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