Reorganizar, avançar e crescer
Após 13 anos de desarticulação, ressurge com força no cenário cultural brasileiro o movimento cineclubista, em sua Jornada de Reorganização, em Brasília. Se essa desarticulação se deve em grande medida às políticas generalizadamente desastrosas, em particular para a área do audiovisual, se deve também, e as discussões desta Jornada de Reorganização o demonstraram, a outros fatores, quer relacionados a insuficiências do próprio movimento, quer relacionados a fatores mais gerais em escala global, que envolvem desde políticas de governo e de Estado a questões relacionadas ao vertiginoso desenvolvimento tecnológico dos últimos anos.
Podemos dizer que se não vivemos um período de coma algumas vezes profunda, não estivemos distantes disso. Uma cinematografia que produziu quase 100 longas/ano, numa só canetada, foi a zero, literalmente.
Felizmente estamos vivendo um novo tempo, e tudo nos parece, agora que nos reencontramos, como um longo pesadelo, melancolicamente esgotado, do qual despertamos e o qual já vamos deixando para trás.
A ação do Estado na modernização da legislação do audiovisual, a instituição da ANCINAV, num contexto de retomada vigorosa do cinema brasileiro, demonstra que existe de fato vontade política do governo federal de reestruturar e democratizar o setor em todos os níveis e elos da cadeia produtiva, da produção à exibição, da difusão ao ensino, ação que em muito se deveu à pressão organizada pela ABD-Nacional, ao Congresso Brasileiro de Cinema entre outras entidades.
No mundo atual, os parâmetros da globalização têm a pretensão de moldar as normas do viver e do com-viver das sociedades, com propósito de uma “interação mundial” bastante particular e cujos efeitos vamos conhecendo mais ampla e profundamente nestes inícios de anos 2000.
Parte essencial dessa mundialização, as novas tecnologias da comunicação, propiciadoras de acesso imediato às informações e ao entretenimento numa abundância nunca suspeitada, exercem papel predominante nessa instantânea interação, ao mesmo tempo fascinante e ameaçadora.
Todavia, essa interação tem sido feita em detrimento das experiências locais, comunitárias e mesmo nacionais, do que tem resultado, para estes lados do Ocidente, uma hamburguerização cultural inaceitável.
As identidades locais, comunitárias, nacionais, precisam florescer, e as tecnologias hoje disponíveis podem auxiliar e muito nesse florescer cultural.
Sob esse aspecto, é evidente a necessidade de criação e de vitalização de espaços culturais e de convívio que articulem a democratização do fazer e do fruir cultural relacionados ao cinema e às tecnologias audiovisuais, em particular o movimento de imagens, que envolve da compreensão da obra exibida ao domínio progressivo do fazer.
Consciente dos meios técnicos e de posse de certo fazer, o público tem condições de desenvolver sua consciência crítica em relação ao cinema, à TV e às demais tecnologias audiovisuais, tão importantes na construção da identidade e da autoimagem individual e coletiva.
A prática cineclubista sempre teve e tem em seu horizonte a inclusão social, palavra tão em moda atualmente. Não há parte em que a atividade cineclubista se tenha desenvolvido em que não tenha havido mobilização, organização, difusão e produção cultural livre e dinâmica, e que não tenha tido como resultado a formação de indivíduos participativos e de público crítico.
O cinema, a imagem em movimento, além de ser objeto comercial e industrial é acima de tudo arte, fonte expressiva de cultura, ele não existe sozinho, e pode trazer consigo a memória e a luta pela construção da identidade de indivíduos, de comunidades locais, de grupos sociais e de culturas, enfim de todo um povo.
O cinema, o vídeo – em VHS, DVD, cibernético ou via satélite – e a televisão, associados às linguagens escrita e sonora, permitem a apreensão e a compreensão do mundo até mesmo por aqueles excluídos do mundo das letras.
Por isso, a linguagem cinematográfica, e seus congêneres, pode e deve ser instrumento de democratização da cultura humana em geral e das manifestações de grupos sociais e culturais em particular – democratização que envolve acesso não só aos meios de exibição, mas também aos de produção e aos de organização em torno de objetivos específicos.
E nada mais oportuno hoje do que as instituições historicamente organizadas voltarem a ocupar seu espaço.
O cinceclubismo entende que não é suficiente ter televisão, vídeo ou DVD, ou ainda dinheiro para ir ao cinema: é necessário ter um domínio crescente da gramática audiovisual, ter consciência dos mecanismos e processos de produção audiovisual e educar-se para a organização em entidades que lutem pela democratização da produção, da difusão e do saber relacionados ao cinema, à televisão, à fotografia e às novas mídias e técnicas audiovisuais, o que não se faz sem reflexão crítica e sem ação transformadora, que é o que, em resumo, estamos realizando nesta Jornada de Reorganização do Movimento Cineclubista Brasileiro.
Para que cineclubes existam de fato e de lei, vários são os aspectos a considerar, desde a constituição formal, até os mínimos aspectos relacionados ao cotidiano de uma entidade, tais como a capacitação humana, a programação, a divulgação, a preservação da memória, a pesquisa, a produção, a autonomia para gerir, propor, administrar e obter respostas positivas dos setores envolvidos em todas as etapas e facetas das atividades afins: realização de cursos, seminários, exibições, debates, e principalmente iniciativas para a formação de platéia, o que permitirá, assim, a constituição de um novo modo de olhar a história da cultura brasileira.
E se o que propomos encontra acolhida em necessidades gerais da economia do audiovisual, mais ainda a encontra nas imensas necessidades da população brasileira, em sua maioria privada não só de comida, mas também de diversão e arte. E esse não atendimento de demandas simbólicas tão essenciais sujeita o indivíduo a uma profunda miséria espiritual, a uma semioexclusão que em nada fica a dever às correntes da escravidão física, que em outros tempos não tão distantes da nossa história caracterizaram a situação de nossa classe trabalhadora.
O que propomos nesta Jornada Nacional de Reorganização tem sua razão de ser apoiada na compreensão de que o público necessita participar de modo ativo não só da fruição, mas também da produção simbólica do Brasil, que envolve elementos de reconhecimento de autoimagem e de construção e transformação de identidade. Isso não pode ser feito condenando-se o público a ser eterno expectador acrítico de obras audiovisuais, é preciso que ele entenda de cinema como entende de seu esporte predileto: como público crítico e como coautor.
A luz essencial do cinema, a final de contas, é gente, são as pessoas. Sem gente não há brilho, só há sala escura. Todavia as pessoas não têm tido seu potencial de envolvimento com as atividades audiovisuais respeitado. Os grandes conglomerados de comunicação estabelecem uma via de mão única com o público, de cima para baixo, opressiva, massacarante, escravizante, alienante.
Neste momento de arejamento da vida cultural brasileira, é bem hora de se lutar pela democratização de tudo que envolve a produção e a difusão audiovisual. Democratização significa participação, acesso aos meios de produção e de difusão, espaço para o debate, a crítica e a ação transformadora coletiva. É preciso que o público ilumine o cinema com sua luz e o aqueça com seu calor, que vem de sua luta, de sua esperança e fé no futuro.
Nesta nova fase que se abre larga e plena de possibilidades para o cineclubismo brasileiro, pretendemos exibir, discutir, estudar e produzir, tendo presente em nossos espíritos a necessidade e a possibilidade de contribuir, com modéstia, mas com combatividade, a identidade brasileira nas telas do cinema e da televisão, seja como for, em 35, 16, Super 8mm, vídeo, digital, via satélite ou o que vier.
Cineclube é a casa do cinema, lugar onde se exibe filmes, se estuda, se forma espectadores e mão-de-obra especializada para o cinema e para a ação cultural militante e voluntária. É o lugar onde é possível, ver e rever novos e antigos filmes e amigos. É o lugar onde a magia da sala escura permanece inalterada, com luz na tela e no coração das pessoas. Cineclube é o ponto de encontro, é o oxigênio da atividade cinematográfica, o lugar de troca de experiências.
Mas o cinema só existe quando o filme ganha a tela à frente do público, que se estiver alienado, estará em parte cego, em parte morto, não só para as imagem que se movimentam à sua frente, mas para a sua própria identidade e para o seu papel de agente da vida de sua cidade, de seu país, do mundo, enfim, da história – esta palavra que andou esquecida nestes últimos anos de pensamento único, e que estamos neste momento, em suma, resgatando.
Podemos dizer que se não vivemos um período de coma algumas vezes profunda, não estivemos distantes disso. Uma cinematografia que produziu quase 100 longas/ano, numa só canetada, foi a zero, literalmente.
Felizmente estamos vivendo um novo tempo, e tudo nos parece, agora que nos reencontramos, como um longo pesadelo, melancolicamente esgotado, do qual despertamos e o qual já vamos deixando para trás.
A ação do Estado na modernização da legislação do audiovisual, a instituição da ANCINAV, num contexto de retomada vigorosa do cinema brasileiro, demonstra que existe de fato vontade política do governo federal de reestruturar e democratizar o setor em todos os níveis e elos da cadeia produtiva, da produção à exibição, da difusão ao ensino, ação que em muito se deveu à pressão organizada pela ABD-Nacional, ao Congresso Brasileiro de Cinema entre outras entidades.
No mundo atual, os parâmetros da globalização têm a pretensão de moldar as normas do viver e do com-viver das sociedades, com propósito de uma “interação mundial” bastante particular e cujos efeitos vamos conhecendo mais ampla e profundamente nestes inícios de anos 2000.
Parte essencial dessa mundialização, as novas tecnologias da comunicação, propiciadoras de acesso imediato às informações e ao entretenimento numa abundância nunca suspeitada, exercem papel predominante nessa instantânea interação, ao mesmo tempo fascinante e ameaçadora.
Todavia, essa interação tem sido feita em detrimento das experiências locais, comunitárias e mesmo nacionais, do que tem resultado, para estes lados do Ocidente, uma hamburguerização cultural inaceitável.
As identidades locais, comunitárias, nacionais, precisam florescer, e as tecnologias hoje disponíveis podem auxiliar e muito nesse florescer cultural.
Sob esse aspecto, é evidente a necessidade de criação e de vitalização de espaços culturais e de convívio que articulem a democratização do fazer e do fruir cultural relacionados ao cinema e às tecnologias audiovisuais, em particular o movimento de imagens, que envolve da compreensão da obra exibida ao domínio progressivo do fazer.
Consciente dos meios técnicos e de posse de certo fazer, o público tem condições de desenvolver sua consciência crítica em relação ao cinema, à TV e às demais tecnologias audiovisuais, tão importantes na construção da identidade e da autoimagem individual e coletiva.
A prática cineclubista sempre teve e tem em seu horizonte a inclusão social, palavra tão em moda atualmente. Não há parte em que a atividade cineclubista se tenha desenvolvido em que não tenha havido mobilização, organização, difusão e produção cultural livre e dinâmica, e que não tenha tido como resultado a formação de indivíduos participativos e de público crítico.
O cinema, a imagem em movimento, além de ser objeto comercial e industrial é acima de tudo arte, fonte expressiva de cultura, ele não existe sozinho, e pode trazer consigo a memória e a luta pela construção da identidade de indivíduos, de comunidades locais, de grupos sociais e de culturas, enfim de todo um povo.
O cinema, o vídeo – em VHS, DVD, cibernético ou via satélite – e a televisão, associados às linguagens escrita e sonora, permitem a apreensão e a compreensão do mundo até mesmo por aqueles excluídos do mundo das letras.
Por isso, a linguagem cinematográfica, e seus congêneres, pode e deve ser instrumento de democratização da cultura humana em geral e das manifestações de grupos sociais e culturais em particular – democratização que envolve acesso não só aos meios de exibição, mas também aos de produção e aos de organização em torno de objetivos específicos.
E nada mais oportuno hoje do que as instituições historicamente organizadas voltarem a ocupar seu espaço.
O cinceclubismo entende que não é suficiente ter televisão, vídeo ou DVD, ou ainda dinheiro para ir ao cinema: é necessário ter um domínio crescente da gramática audiovisual, ter consciência dos mecanismos e processos de produção audiovisual e educar-se para a organização em entidades que lutem pela democratização da produção, da difusão e do saber relacionados ao cinema, à televisão, à fotografia e às novas mídias e técnicas audiovisuais, o que não se faz sem reflexão crítica e sem ação transformadora, que é o que, em resumo, estamos realizando nesta Jornada de Reorganização do Movimento Cineclubista Brasileiro.
Para que cineclubes existam de fato e de lei, vários são os aspectos a considerar, desde a constituição formal, até os mínimos aspectos relacionados ao cotidiano de uma entidade, tais como a capacitação humana, a programação, a divulgação, a preservação da memória, a pesquisa, a produção, a autonomia para gerir, propor, administrar e obter respostas positivas dos setores envolvidos em todas as etapas e facetas das atividades afins: realização de cursos, seminários, exibições, debates, e principalmente iniciativas para a formação de platéia, o que permitirá, assim, a constituição de um novo modo de olhar a história da cultura brasileira.
E se o que propomos encontra acolhida em necessidades gerais da economia do audiovisual, mais ainda a encontra nas imensas necessidades da população brasileira, em sua maioria privada não só de comida, mas também de diversão e arte. E esse não atendimento de demandas simbólicas tão essenciais sujeita o indivíduo a uma profunda miséria espiritual, a uma semioexclusão que em nada fica a dever às correntes da escravidão física, que em outros tempos não tão distantes da nossa história caracterizaram a situação de nossa classe trabalhadora.
O que propomos nesta Jornada Nacional de Reorganização tem sua razão de ser apoiada na compreensão de que o público necessita participar de modo ativo não só da fruição, mas também da produção simbólica do Brasil, que envolve elementos de reconhecimento de autoimagem e de construção e transformação de identidade. Isso não pode ser feito condenando-se o público a ser eterno expectador acrítico de obras audiovisuais, é preciso que ele entenda de cinema como entende de seu esporte predileto: como público crítico e como coautor.
A luz essencial do cinema, a final de contas, é gente, são as pessoas. Sem gente não há brilho, só há sala escura. Todavia as pessoas não têm tido seu potencial de envolvimento com as atividades audiovisuais respeitado. Os grandes conglomerados de comunicação estabelecem uma via de mão única com o público, de cima para baixo, opressiva, massacarante, escravizante, alienante.
Neste momento de arejamento da vida cultural brasileira, é bem hora de se lutar pela democratização de tudo que envolve a produção e a difusão audiovisual. Democratização significa participação, acesso aos meios de produção e de difusão, espaço para o debate, a crítica e a ação transformadora coletiva. É preciso que o público ilumine o cinema com sua luz e o aqueça com seu calor, que vem de sua luta, de sua esperança e fé no futuro.
Nesta nova fase que se abre larga e plena de possibilidades para o cineclubismo brasileiro, pretendemos exibir, discutir, estudar e produzir, tendo presente em nossos espíritos a necessidade e a possibilidade de contribuir, com modéstia, mas com combatividade, a identidade brasileira nas telas do cinema e da televisão, seja como for, em 35, 16, Super 8mm, vídeo, digital, via satélite ou o que vier.
Cineclube é a casa do cinema, lugar onde se exibe filmes, se estuda, se forma espectadores e mão-de-obra especializada para o cinema e para a ação cultural militante e voluntária. É o lugar onde é possível, ver e rever novos e antigos filmes e amigos. É o lugar onde a magia da sala escura permanece inalterada, com luz na tela e no coração das pessoas. Cineclube é o ponto de encontro, é o oxigênio da atividade cinematográfica, o lugar de troca de experiências.
Mas o cinema só existe quando o filme ganha a tela à frente do público, que se estiver alienado, estará em parte cego, em parte morto, não só para as imagem que se movimentam à sua frente, mas para a sua própria identidade e para o seu papel de agente da vida de sua cidade, de seu país, do mundo, enfim, da história – esta palavra que andou esquecida nestes últimos anos de pensamento único, e que estamos neste momento, em suma, resgatando.
Viva o cinema brasileiro!
24ª. Jornada Nacional de Cineclubes
Hotel Nacional
Brasília, 23 de novembro de 2003.
* A Plenária da 24ª. Jornada Nacional de Cineclubes atribuiu a redação da Carta de Brasília a mim (Jeosafá F. Gonçalves) e a Berê Bahia. A Carta foi aprovada por unamimedade e aclamação.
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