sábado, 11 de junho de 2011

Cineclubismo: fome de gol

30/6/2004

A trajetória do cinema no Brasil semelha-se à do futebol: começa pela elite, desloca-se para as classes intermediárias, cristaliza-se nelas um tempo, vai-se popularizando e se aproxima cada vez mais das classes trabalhadoras.

Trazido ao país no início do século passado pelos abastados proprietários de indústrias, o futebol era praticado pela alta burguesia em clubes fechados. De vez em quando, para completar o time, tiravam um operário da fábrica. Há já uma razoável bibliografia no Brasil sobre esses primórdios do esporte que mata o brasileiro do coração, e vale a pena consultar, pois é uma fonte para se compreender os modos pelos quais os trabalhadores vão, pouco a pouco, conquistando espaços antes reservados apenas aos endinheirados.

Acontece que não se demorou a perceber que os operários jogavam melhor do que os patrões, e estes, sempre espertos, foram cedendo lugar no campo para que seus operários goleassem os times adversários: mandar, do lado de fora das quatro linhas, para eles, ficou sendo o esporte que sobrou.

O fato é que perderam o lugar no time e nunca mais o reconquistaram.

Mas um problema apareceu desde o início para o trabalhador futebolista: o futebol não era remunerado e isso limitava em tempo e dedicação a prática mais regular. As histórias desse período de informalidade são também conhecidas, quase sempre dramáticas, e algumas também já viraram livros. Como a profissão demorou a ser regulamentada, depois de uma certa idade, dedicar-se ao futebol ficou sendo sinônimo de irresponsabilidade.

As coisas só foram ficando um pouco melhores quando se partiu para a profissionalização. Ou seja, quando, de uma vez por todas, a prática deixou de ser lazer de horas vagas da elite para tornar-se atividade de trabalhador, remunerada.

Naturalmente os cartolas, eternos patrões, lutam até hoje para que essa profissão mantenha-se diferenciada das outras categorias de trabalhadores, pois assim fica mais fácil manter sob chicote curto esses um tanto atletas, um tanto artistas da bola.

Ainda não se inventou uma fórmula adequada para que essa categoria profissional se consolide de modo mais autônomo (os cartolas são verdadeiros senhores de escravos modernos, compram e vendem gente e quando a lei se moderniza, por uma brecha eles encontram meios de, sob outra forma, manter a lógica desse comércio humano), mas a verdade é que jogadores, técnicos, preparadores físicos e demais profissionais da área são trabalhadores, alguns privilegiados, com salários de mega-sena, mas a maioria humilde, matando dois leões por dia para sobreviver.

A analogia com o cinema e com o cineclubismo se justifica quando se vê que a tecnologia diminuiu vertiginosamente a distância entre os equipamentos e os trabalhadores. Não tão antigamente, câmeras fotográficas e filmadoras eram coisas a que mesmo a classe média não tinha acesso.

Hoje, câmeras há as mais variadas. Seja em VHS, digital, não é difícil encontrar em uma família de trabalhadores uma delas. As câmeras mais sofisticadas, clubes de bairros ou de escolas têm acesso, basta união e planejamento que esses equipamentos logo aparecem - assim como vídeos, DVDs, projetores de vídeo e datashow. Principalmente em cidades médias e grandes.

O acesso coletivo às tecnologias audiovisuais vai-se democratizando acentuadamente, e isso vai pondo nas mãos dos trabalhadores um fazer que antes lhes escapava. Tal como o futebol, é comum em periferias de grandes cidades encontrarmos grupos se organizando, filmando, estudando e exibindo suas próprias produções.

São festivais de vídeo minuto, de curtas metragens, de longas, de documentários, de etnia, de produções domésticas, de produções de jovens ou experimentais, são mostras em sindicatos, regionais, em centros comunitários, são exibições em circuitos alternativos e uma variedade muito grande de eventos que são verdadeiramente o sinal dos tempos, e esses festivais que brotam por toda parte do país para dar vazão a essa produção vai empurrando a elite para o banco de reservas e dele para a arquibancada, tal como o fizera o futebol lá pelos anos 30 do século passado.

É lógico que a elite resiste e se agarra a leis e políticas ultrapassadas para manter seus privilégios, mas é como se tentasse represar água com peneira: vaza para todos os lados.

Necessitamos voltar-nos para aspectos legais e políticos que impedem uma maior e mais rápida democratização do setor audiovisual, pois um jovem com câmera na mão significa, antes de mais nada, inclusão social. E um cineclube funcionando regularmente em um centro comunitário, em uma casa de cultura do município etc. significa ativação não só cultural, mas também econômica.

Assim como o futebol, o cinema e as artes audiovisuais ficam mais próximos do trabalhador quando significam emprego. Se arte e trabalho não andam juntos, o trabalhador é que fica na arquibancada, a assistir o que a elite e a classe média dizem de si e do mundo.

Já sabemos em que resultou o feliz casamento entre o futebol e as classes trabalhadoras no Brasil, é chegada a hora de descobrirmos os frutos do casamento entre elas e as tecnologias audiovisuais.

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